domingo, 26 de julho de 2009

TRISTÃO E ISOLDA

livros de bolso europa-américa - 104
Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa
Título original:
Tristan et Yseult
Tradução de
Maria dos Anjos Braamcamp Figueiredo
3ª Edição, Agosto de 2000
Publicações Europa-América, Lda.
Apartado 8, 2726-901 MEM MARTINS
PORTUGAL
europa.americamail.telepac.pt
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
Que literatura oferece um exemplo mais completo, mais patético,
de amantes trágicos do que Tristão e Isolda? Houve alguma vez criação
mais forte e mais perfeita do que estes dois seres perdidamente
dedicados um ao outro vivendo apenas pelo seu mútuo amor? Nunca
mais rica gama de temas inspirou um poeta, nunca o amor humano
soube encontrar acentos mais verdadeiros e mais intensos.
Régine Pernoud Em Luz Sobre a Idade Média - A obra mais
célebre da literatura cavaleiresca cuja ressonância ultrapassou muito o
quadro da época medieval para se projectar até aos nossos dias e
servindo de inspiração em 1865 a Richard Wagner cuja ópera traduz
musicalmente toda a paixão e o amor eterno presentes no tema.
ÍNDICE
Nota introdutória
I - Nascimento de Tristão
II - As Infâncias de Tristão
III - O venábulo envenenado do Morholt
IV - A barca sem vela nem remos
V - A rapariga dos cabelos de ouro
VI - vitória sobre o dragão da Irlanda
VII - A brecha da espada
VIII - Isolda conquistada para o rei Marcos
IX - O sortilégio é bebido
X - A noite de núpcias do rei Marcos
XI - Brangia entregue aos servos
XII - A inveja de Kariado
XIII - A harpa e a rota
XIV - A aveleira e a madressilva
XV - Marcos empoleirado no pinheiro grande
XVI - A Farinha-flor
XVII - O salto da cappela
XVIII - Isolda abandonada aos leprosos
XIX - Os amantes na floresta
XX - O impossível arrependimento
XXI - A Clemência do rei Marcos
XXII - O fim do sortilégio
XXIII - A separação dos amantes
XXIV - O juramento judiciário é exigido à rainha
XXV - O juramento ambíguo
XXVI - Disfarces e crueldades do amor
XXVII - As foices sangrentas
XXVIII - A miragem da outra Isolda
XXIX - A água atrevida
XXX - O xofrango e o corujão
XXXI - O reencontro dos amantes
XXXII - O pecado e a penitência de Isolda
XXXIII - Tristão louco
XXXIV - A sala das imagens
XXXV - A última ferida
XXXVI - A morte dos amantes
NOTA INTRODUTÓRIA
Tristão é o protagonista de uma trágica aventura de amor e de
morte que, nas representações dos trovadores franceses do século XII,
se situa dentro de um vasto marco de empresas de audácia e de
cortesia, de míticas façanhas e de gestas de cavalaria, de aventuras
prodigiosas, de encantos, sortilégio de paixões generosas e ferozes. Mas
a matéria heróica ou maravilhosa só constitui o marco; é acessória e
episódica, e nem sempre é a mesma nos diversos poemas ou romances
franceses cujo protagonista é Tristão.. Isso demonstra que a
personalidade de Tristão como figura poética não pode definir-se
partindo dos diversos mitos que permitiram o aparecimento dos
romances que a ele se referem: Tristão entra, e torna-se imortal no
mundo da poesia unicamente como herói de um amor fatal,
independente de todo o vínculo e de toda a obrigação; um amor que não
obedece a leis, que vence tudo e tudo transcende, inclusive o direito
mais sagrado, a moralidade, a religião e a própria honra que, na
sociedade cavaleiresca na qual o romance de Tristão nasceu, é a
realidade mais nobre e mais elevada, e a lei suprema, sagrada e
inviolável.
Que fantasia de poeta criou, pois, esta imagem tão grande, que
parece renegar ou repudiar os ideais universalmente aceites e sentidos
no século encarnando e introduzindo uma noção da vida e da condição
humana! só por acidente coincide com a noção cortês do mundo e da
vida? A pergunta leva-nos a um terreno inseguro, a graves problemas,
pois muitos são os romances e os lais que, no século XII, surgiram em
França à volta da figura de Tristão, sendo também obscura a cronologia
destes, além de ser impossível determinar exactamente as suas mútuas
relações. Não passa de mera hipótese a doutrina segundo a qual teria
existido uma fonte mais antiga de onde derivariam todos os textos que
conhecemos.
O problema complica-se ainda mais pelo facto de os dois textos
franceses mais importantes relativos a Tristão se acharem em estado
fragmentário. De outros, já hoje perdidos, chegam-nos testemunhos
cujo valor e significado oferecem dúvidas, sem contar que é difícil
estabelecer até que ponto as versões alemãs ou norueguesas são
reflexo, na parte ou no todo, de textos franceses anteriores. Segundo a
crítica de inspiração romântica, todos os textos teriam por origem a
lenda de Tristão que remontaria à antiguidade celta, supostamente
conservada e transmitida por cantores ou bardos gauleses ou bretões.
Sobre Tristão e Isolda, Régine Pernoud diz, em Luz sobre a Idade
Média: «Que literatura oferece um exemplo mais completo, mais
patético, de amantes trágicos, do que Tristão e Isolda? Houve alguma
vez criação mais forte e mais perfeita do que estes dois amantes,
perdidamente dedicados um ao outro, vivendo apenas pelo seu mútuo
amor? Nunca mais rica gama de temas inspirou um poeta, nunca o
amor humano soube encontrar acentos mais verdadeiros e mais
intensos.»
É neste poema medieval que o compositor alemão Richard
Wagner vai encontrar inspiração para escrever a ópera com o mesmo
nome, que será representada em Munique em 1865.
Wagner compô-la numa época em que estava também
apaixonado.
É menos uma ópera propriamente dita que um longo poema de
amor, de intensidade muitas vezes sobre-humana. A paixão não é
expressa apenas através das vozes dos personagens mas sobretudo
pelas vozes da orquestra. E assim todo o drama - a paixão mais forte do
que tudo e o amor que faz Isolda morrer com a morte de Tristão - está
resumida em duas páginas que em concerto se costumam tocar juntas:
o prelúdio e a conclusão. O prelúdio exprime o nascimento e o domínio
crescente da paixão em dois corações unidos pela força do destino. A
página final canta o êxtase de Isolda indo reunir-se, por um milagre de
amor, a Tristão, o qual, após uma longa separação, ela volta a ver,
embora apenas para receber o seu derradeiro suspiro.
Tristão e Isolda
Tradução de Maria do Anjo Braacamp Figueiredo. Editora
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1994
I
NASCIMENTO DE TRISTÃO
HÁ MUITO, muito tempo, depois da queda do Império Romano,
mas antes da coroação de Carlos Magno como imperador do Ocidente,
reinava na Cornualha o rei Marcos. Tanto residia em Lantien, um solar
situado na paróquia de Saint-Samson, como na fortaleza de Tintagel,
cujo porto se abria para a costa ocidental da Cornualha.
Marcos procedia de uma ilustre linhagem; talvez descendesse até
de um antepassado mítico identificado com um deus de forma animal,
do qual herdara as orelhas de cavalo, que dissimulava cuidadosamente
sob o gorro. O próprio nome, Marcos, significava cavalo em língua celta.
O rei chegara à idade madura sem ter arranjado mulher, mas
uma das suas irmãs tinha um filho, o duque Audret, ao qual concedeu
durante muito tempo toda a sua confiança. A irmã mais nova,
Brancaflor, ainda não casara.
Marcos era nobre, freqüentemente generoso, leal, corajoso, mas
irascível, impressionável e de humor variável, capaz de uma violência
extrema e até de crueldade nos seus súbitos arrebatamentos.
Desempenhava com honra o seu lugar nos combates, quando tinha de
comandar o seu exército, mas distinguia-se sobretudo na caça, a sua
ocupação preferida. Entre os nobres cornualhenses seus vassalos, que
lhe deviam conselho e ajuda, havia vários que pretendiam quase sempre
lhe impor as suas vontades e que, para obrigarem-no a satisfazer os
seus desejos, não hesitavam em ameaçá-lo com a rebelião: se Marcos
não se submetesse às suas exigências, retirar-se-iam para os seus
castelos construídos em rochedos elevados, cercados de altas paliçadas
e de fossos profundos, e pegariam em armas contra ele. Marcos não era
homem para enfrentá-los abertamente, e por mais de uma vez se
inclinara perante as ameaças desses turbulentos senhores feudais,
sobre os quais a sua autoridade era precária. Preferia por vezes ceder,
para depois retomar a superioridade sobre eles por meio da astúcia e
ganhando tempo.
Marcos teve de defender-se várias vezes contra os ataques de
outros reis cujas terras confinavam com as suas e que faziam incursões
na Cornualha. Mas era tal a sua fama de nobreza e valor que vários
príncipes e barões lhe vinham oferecer os seus serviços e combater por
ele. Tal foi o caso de Rivalino, filho do rei de Leônis. Tinha um porte tão
altivo e distinguia-se por tais feitos que chamou a atenção de
Brancaflor, a irmã mais nova de Marcos. Esta era bela e graciosa, de
nobre figura, louvada e desejada entre todas, cortês e bem-educada; por
certo que não havia em toda a Grã-Bretanha uma rosa com tanta graça
e tal frescura. Um dia em que vira Rivalino justar com outros vassalos,
caiu em tal aflição e em tais cuidados, nela tão pouco comuns, que nem
ela própria compreendia bem os movimentos do seu coração. Nesse dia,
reconheceu que Rivalino ultrapassava todos os outros jovens em
habilidade e valentia; ao ouvir os homens e as mulheres gabarem a sua
audácia e coragem, ao contemplar durante longo tempo a sua destreza
a cavalgar e a justar, todo o seu pensamento foi para ele com o seu
desejo. Em breve ambos trazem um mesmo cuidado e um mesmo
segredo: ela ama-o com todo o coração e ele com leal querer. Os jovens
eram excelentes a arranjar encontros sem atrair censuras: nem o rei
nem ninguém na corte desconfiava de nada. Todavia, como Rivalino
ultrapassava todos os homens em boas qualidades, se este tivesse
declarado a Marcos o seu desejo de desposar a irmã, o rei teria de bom
grado consentido na união. Mais ainda: sem que Rivalino lhe tivesse
dito alguma coisa, o rei parecia por vezes favorecer os seus encontros
com Brancaflor.
Algum tempo depois, Rivalino ficou ferido num combate ao
serviço de Marcos e os seus homens transportaram-no para Tintagel, a
fim de aí ser tratado. Brancaflor, pelo que ouvia dizer, julgava que os
dias do seu amado estavam contados, mas não ousava mostrar em
público a sua dor, com medo de revelar sua paixão. Desejava, pelo
menos, visitar o ferido antes que este morresse. Usou de tanta
prudência e astúcia que ninguém a viu entrar no quarto. Avançou para
o ferido, sentou-se no leito onde este jazia e logo, de amor e pesar ao
mesmo tempo, desfaleceu. Quando se reanimou, tomou-o nos braços e
beijou-o; os seus lábios devolveram-lhe a alegria e a força. Rivalino
apertou-a longamente contra si e foi então que concebeu a criança cuja
história é o assunto deste romance.
Tratado pelos mais hábeis médicos, Rivalino em breve se curou.
Mas mal tinha recuperado a saúde, chegam mensageiros do seu país: o
seu pai morrera e tinha de regressar imediatamente a Leônis para, por
sua vez, aí reinar. Quando Rivalino, pronto a embarcar, veio despedir-se
de Brancaflor, esta lhe disse: “Doce amigo, quanto mal me adveio por
amor de vós! Se Deus não vem em meu auxílio e não me socorre, nunca
mais terei alegria, pois aos sofrimentos antigos se vão juntar novas
misérias. Após a vossa partida, poderia tentar retomar confiança e
coragem, mas ficai sabendo que trago em mim um filho vosso; ficando
aqui, terei de suportar sozinha o castigo da minha falta.” Rivalino fá-la
sentar a seu lado, seca-lhe as lágrimas e diz: “Querida, ignorava o que
acabais de me contar; agora que o sei, quero que venhais comigo para o
meu país e aí vos prestarei as honras que convêm à nobreza do nosso
amor.”
Era já noite cerrada quando Rivalino, após se ter despedido do rei
Marcos, alcançou a nau onde Brancaflor, aproveitando a obscuridade,
se lhe juntou. Os seus companheiros já aí estavam reunidos, prontos
para zarpar: levantam o mastro, içam as velas, o vento lhes é propício.
Chegam sem novidade ao porto de Kanoël.
De regresso ao seu país, onde sucedia ao seu defunto pai,
Rivalino encontrou a terra em grande perigo, pois o duque Morgan
aproveitara-se da morte do velho rei e da ausência do filho para uma
vez mais invadir Leônis. Rivalino mandou chamar o marechal da sua
corte, Rouault le Foitenant, que sabia fiel e dedicado. Confiou-lhe o que
acontecera a ele próprio e à sua amada Brancaflor. “Sire - disse o
marechal -, vejo que não cessastes de crescer em mérito e em valor. Não
podíeis ter encontrado mulher de mais alta linhagem que a irmã do rei
Marcos. Escutai, pois, o meu conselho: pelo bem que ela vos fez,
recompensai-a. Quando tivermos levado a nossa guerra a bom termo,
uma vez libertos dos embaraços que nos causa o duque Morgan,
celebrai umas bodas grandes e ricas e tomai-a publicamente por
legítima mulher perante os vossos parentes e barões. Mas desposai-a
desde já perante a Igreja e à vista dos clérigos e dos leigos, como o exige
a lei de Roma. Deste modo aumentareis a vossa honra.” Assim fez
Rivalino, e quando Brancaflor se tornou sua mulher, confiou-a à
salvaguarda de Foitenant, enquanto ele próprio juntava-se ao seu
exército.
Rouault conduziu a jovem esposa para uma fortaleza e lá a
recebeu em sua casa com grandes honras, como convinha à sua classe.
Rivalino ainda não regressara da guerra quando a sua mulher deu à luz
um filho, morrendo ao dar-lhe a vida. Antes de morrer, Brancaflor
entregara a Rouault le Foitenant um anel precioso que lhe dera o rei
Marcos e que vinha dos seus antepassados comuns: este anel deveria
ser entregue à criança, quando esta crescesse, como recordação de sua
mãe e da sua estirpe materna.
Quando Rivalino, algumas semanas mais tarde, voltou vitorioso
da guerra, experimentou uma cruel dor e deixou-se afundar num
profundo desespero. Depois de ter prestado as honras fúnebres à
querida morta, enviou mensageiros ao rei Marcos para anunciar-lhe o
seu casamento com Brancaflor e, ao mesmo tempo, como esta perecera
ao ter o filho. Em seguida mandou batizar a criança sem nenhuma
demonstração pública de alegria e deu-lhe o nome celta de “Drustan”:
os contadores e a tradição popular transformaram-no em “Tristão”, para
melhor significar a tristeza dos pais no momento do seu nascimento,
tristeza essa que não era mais do que um presságio dos transes que o
destino reservava ao recém-nascido.
II
A INFÂNCIA DE TRISTÃO
DURANTE os seus primeiros anos, Tristão foi alimentado por
amas na casa de seu pai. Com sete anos feitos, Rivalino achou que
chegara a hora de retirá-lo às mulheres e confiou-o a um sábio
escudeiro chamado Gorvenal, que se encarregou de sua educação.
Tristão aprendeu a correr, a saltar, a nadar, a montar, a atirar ao arco,
a combater com a espada, a manejar o escudo e a lança. Em breve se
distinguiu na arte da montaria e da falcoaria, perito em reconhecer as
qualidades e defeitos de um cavalo, as virtudes de um ferro bem
temperado e a arte de talhar a madeira. A isto se juntavam o canto e a
música, pois tocava maravilhosamente harpa e rota e compunha lais à
maneira dos jograis bretões. Coisa ainda mais rara, imitava, a ponto de
enganar, o canto do rouxinol e dos outros pássaros.
Acabava de atingir os quinze anos quando seu pai, o rei Rivalino,
foi morto numa cilada pelo seu inimigo mortal, o duque Morgan. O órfão
foi recolhido e protegido dos ataques do inimigo de seu pai pelo senescal
Rouault le Foitenant, que o recebeu em sua própria casa com Gorvenal
e tomou conta dele como dos seus próprios filhos. Em breve Gorvenal
achou este refúgio insuficiente para a segurança do adolescente:
decidiu ir-se de Leônis com ele e dirigir-se pelo mar para a Cornualha, a
fim de colocar Tristão sob a salvaguarda de seu tio, o rei Marcos. O
rapaz desejava ardentemente entrar ao serviço de seu tio, do qual
ouvira seu pai e os mais valorosos homens do seu séquito falar tão
freqüentemente. No entanto, pediu ao seu mestre Gorvenal que não
revelasse a Marcos que era filho de Brancaflor. Queria ganhar a estima
e a benevolência do rei por si mesmo e pelo seu valor pessoal. Por nada
deste mundo teria aceitado dever o favor do rei ao nascimento e ao
parentesco. O sábio Gorvenal consentiu nisso de bom grado.
Ao aproximarem-se de Tintagel, encontraram um grupo de
caçadores que havia subjugado um veado. Quando o animal flectiu os
jarretes, um dos monteiros matou-o com o punhal e cortou-lhe a
garganta para trinchá-lo. Tristão, admirado com este espetáculo,
exclamou: “Que fazeis? Será próprio retalhar um animal tão nobre como
um porco degolado? E esse o costume deste país?” “Estrangeiro -
respondeu o monteiro -, que censuras no que faço? Corto primeiro a
cabeça deste veado, depois trincho o corpo em quatro pedaços, que
levaremos suspensos dos arções das nossas selas para os
apresentarmos ao rei Marcos, nosso senhor. Assim, desde os tempos
mais antigos, fizeram sempre os homens da Cornualha. Se, no entanto,
conheces costumes mais louváveis, ensina-no-los.” Tristão pegou na
faca que o monteiro lhe estendia, ajoelhou-se, esquartejou o animal e
depois retirou-lhe o focinho, a língua, os órgãos masculinos e a veia do
coração. Os caçadores e os seus lacaios, inclinados sobre ele,
observavam-no, surpreendidas e encantados. “Sabes belos costumes
disse o monteiro. - Em que terras os aprendeste? Peço-te, diz-nos o teu
país e o teu nome.” “Chamam-me Tristão e aprendi estes costumes no
reino de Leônis.” Depois, após uma pausa, acrescentou com manha: “O
meu pai é mercador. Fui raptado por piratas da Noruega, com o meu
mestre que vedes aí, mas a tempestade desfez nos rochedos a nau que
nos transportava e foi assim que arribamos sem o querermos a este
país. Se me aceitardes no vosso grupo, seguir-vos-ei de bom grado até à
corte do rei Marcos, vosso senhor.” O monteiro continuou: “Admira-me
que na terra de Leônis os filhos de mercadores saibam o que aqui
ignoram os filhos dos mais nobres vassalos. Vem conosco, já que o
desejas, e sê bem-vindo.” Tristão ensinou-lhes então como deviam
andar dois a dois para cavalgarem em boa ordem, segundo a nobreza
dos pedaços de carne que cada um levava, dispostos em forquilhas de
madeira.
Em breve avistaram o castelo de Tintagel, que se elevava
orgulhosamente acima do mar, forte e belo, premunido pelas suas altas
muralhas contra qualquer assalto. A torre de menagem, outrora
construída pelos gigantes, era feita de blocos de pedra grandes e bem
talhados em grés e em granito. O cortejo transpôs a porta guardada por
doze homens de armas.
Depois de o monteiro-mestre lhe ter contado a aventura, Marcos
admirou o belo andamento do cortejo e o veado bem esquartejado. Mas,
acima de tudo, admirava o jovem estrangeiro e não cessava de fitá-lo. À
noite, após terem levantado as mesas, um jogral galês, mestre na sua
arte, avançou pela sala por entre os barões reunidos e cantou lais
acompanhando-os à harpa. Quando acabou, Tristão pegou por sua vez
na harpa e, para agradecer ao seu hospedeiro, cantou tão bem que os
barões maravilharam-se ao ouvi-lo. Terminado o lai, o rei manteve-se
durante muito tempo silencioso. “Filho - disse por fim -, bendito sejas,
pois Deus ama os bons cantores: as suas vozes penetram no coração
dos homens e fazem-nos esquecer o luto e o sofrimento. Vieste para
minha alegria e esta casa, fica muito tempo ao pé de mim.” “Sire - disse
Tristão, inclinando-se diante dele - servir-vos-ei da melhor vontade
como vosso tocador de harpa, vosso monteiro e vosso servo da gleba.”
Assim foi feito, e durante três anos Tristão seguiu Marcos em todas as
caçadas. De noite, dormia freqüentemente no quarto real, entre os
íntimos e os fiéis. Para lhe ensinar os costumes próprios da Cornualha,
Marcos confiou-o ao seu senescal, o sábio Dinas de Lidan, o qual se
afeiçoou ao rapaz. Quando Tristão atingiu o seu vigésimo ano, Marcos
doou-lhe armas magníficas e confiou-lhe um dos mais altos postos do
seu exército.
III
A LANÇA ENVENENADA DO MORHOLT
UM GRANDE perigo ameaçava a terra do rei Marcos. O Morholt
da Irlanda chegara a Tintagel numa nau com todos os seus
companheiros. Era um guerreiro temível, de uma estatura gigantesca. O
rei da Irlanda, que casara com a sua irmã, uma feiticeira experiente,
enviava-o para exigir de Marcos um tributo. Este tributo fora imposto à
Cornualha cerca de um século antes, no decurso de uma guerra infeliz.
Em virtude deste tratado, os irlandeses podiam cobrar à Cornualha no
primeiro ano trezentas libras de cobre, no segundo trezentas libras de
prata fina, no terceiro trezentas libras de ouro, mas no quarto ano
levavam trezentos rapazes e trezentas moças com a idade de quinze
anos, tirados à sorte entre as famílias da Cornualha. Ora, há quinze
anos o rei Marcos recusava-se a pagar esse tributo; assim, os enviados
do Morholt vinham intimá-lo a entregar-lhes os trezentos rapazes e as
trezentas donzelas para servirem o bel- prazer dos senhores irlandeses.
Se um campeão do rei Marcos se oferecesse para combater o gigante a
sós e o dominasse, a Cornualha seria libertada do tributo.
Grande foi a dor do povo da Cornualha. De todo o lado elevavamse
gritos de dor. As mães lamentavam-se em voz alta: “Filhos, preferia
que tivésseis morrido ao nascer ou durante a infância a ver os da
Irlanda levarem-vos como servos! Mar pérfido e cruel, vento desleal, por
que não afogasteis com borrascas e tempestades todos esses irlandeses
nas vagas?”
Tristão soube das exigências do Morholt; viu que os senhores
baixavam a cabeça, transidos de medo, e que não diziam palavra.
Concebeu então o intento de pedir ao rei Marcos para ser o seu
campeão contra o cruel gigante. Solicitou os conselhos de Gorvenal:
“Filho - disse-lhe o mestre -, falas com senso e coragem, mas o Morholt
é tal combatente que não tem igual no mundo inteiro e tu és ainda
jovem.” Todavia Gorvenal acabou por ceder ao pedido de Tristão, e
ambos concordaram que, antes de tudo, importava obter o
consentimento do rei. Marcos resistiu primeiro, depois deixou-se ceder,
mas, antes de tomar a decisão e de a declarar perante todos, convocou
o conselho dos barões.
Nesse momento, o próprio Morholt irrompeu pela sala onde
reunia o conselho: pensava que as crianças já estavam escolhidas e que
os cornualhenses, assustados com as ameaças dos seus mensageiros,
lhas iam entregar sem discussão. Tristão levantou-se; numa voz calma
e com um ar tranqüilo, pediu ao rei Marcos que lhe concedesse como
dom insigne o favor de travar a batalha com o irlandês: “Ire, e vós,
senhores cornualhenses, o Morholt pretende ter o direito de levar os
vossos filhos, mas eu quero provar em combate singular que não tem
nenhum tributo a levar de vós.” Marcos, ligado pela promessa, aprovou
publicamente o propósito de Tristão.
Furioso, o Morholt ergue-se: tem a fronte alta e ultrapassa todos
em estatura. Diz numa voz sonora: “Loucos, ouvi o que dissésteis e que
não tendes a intenção de pagar o tributo. Aceito, pois, que um de vós
me combata a sós e que, se eu não fizer triunfar com as armas o nosso
direito ao tributo, vós dele sejais plenamente dispensados. E já que um
de entre vós é tão ousado que me ouse defrontar e aceitar o meu
desafio, que esse receba a luva que lhe estendo!”
Tristão não estava longe. Tinha um porte orgulhoso e um belo
corpo. Avançou para o Morholt, pegou na luva e disse: “Morholt, esse
sou eu!” Os irlandeses, primeiro estupefatos, recompuseram- se
imediatamente e proclamaram que só aceitariam esse adversário
desconhecido se fosse de tão boa linhagem quanto o seu senhor. Então
Tristão exclamou: “Se o vosso senhor é filho de rei, também eu o sou; o
rei Rivalino de Leônis era meu pai, o rei Marcos é meu tio, pois nasci de
sua irmã Brancaflor e chamo-me Tristão!”
Perante esta revelação imprevista, o rei Marcos mergulhou ao
mesmo tempo na alegria de encontrar um sobrinho e na angústia de
arriscar logo a sua perda. Queria afastar a dúvida que o constrangia,
desejando igualmente que o rapaz tivesse falado verdade! Mas Gorvenal
avança por sua vez: “Sire, Tristão disse a verdade, e como prova eis um
anel precioso que outrora oferecesteis a vossa irmã Brancaflor e que
Tristão recebeu de Rouault le Foitenant, senescal do defunto rei
Rivalino. Vossa irmã havia-lho confiado ao morrer, com a missão de
entregá-lo um dia a seu filho quando este tivesse deixado a infância.” O
rei pegou na jóia e reconheceu o anel, herança dos seus antepassados:
era de ouro e engastado de pedras preciosas. Então Marcos fez sinal a
Gorvenal para este se aproximar e perguntou-lhe em voz baixa: “Por
certo, vejo agora que me dizeis a verdade; mas por que me haveis
enganado primeiro afirmando-me que Tristão era filho de um mercador
de Leônis?” “É verdade, sire, que há nisso uma notícia falsa, mas nem
por sombras uma mentira, pois nem Tristão nem eu jamais tivemos a
intenção de vos iludir nesse ponto. Não era mais que uma artimanha
inventada por vosso sobrinho, pois ele entendia ganhar somente as
vossas boas graças e amizade pelos seus próprios méritos, o seu valor e
o seu fiel serviço: eis a razão por que quis, primeiro, deixar-vos ignorar
o estreito parentesco que o liga a vós.” Marcos, com um gesto da mão,
deu a entender que estava satisfeito com essa resposta e que
compreendia a conduta do sobrinho. No entanto esperava poder ainda
desviá-lo de um empreendimento que achava não só perigoso, mas
também temerário e manchado de desmesura. Todas estas objeções não
tiveram nenhum efeito sobre a determinação de Tristão: demonstrou a
seu tio a necessidade de vingar a honra da Cornualha e de libertar o
reino de um tributo vergonhoso e intolerável. Finalmente, Marcos
resignou-se a confirmar o dom que concedera a Tristão, antes mesmo
de ter reconhecido nele o sobrinho, de defrontar o Morholt em combate
singular. Como sinal perceptível dessa honra e em símbolo de
investidura, o rei entregou a Tristão, perante toda a assistência, uma
espada de grande preço, forjada não há muito por um célebre ferreiro e
que havia pertencido ao próprio pai de Marcos.
Segundo um antigo costume celta, ficou combinado entre o
Morholt e Tristão que o combate se efetuaria num certo dia, a uma
certa hora e num certo lugar; na ilha Saint-Samson, situada em frente
a Tintagel e a pouca distância da costa. Esta ilha era coberta de árvores
com espessa folhagem e nenhum ser vivo aí habitava, de modo que não
haveria ninguém para assistir ao combate ou para tentar forçar o
destino socorrendo um ou outro dos adversários. Assim só mesmo Deus
decidiria a sorte das armas e manifestaria de que lado estava o direito.
Todos os conselheiros do rei ratificaram este acordo.
Na manhã do dia fixado, Tristão apresenta-se no palácio do rei:
Marcos afivela-lhe o elmo, cinge-lhe a espada, recomenda-o a Deus;
todo o povo reza pelo bravo. Um pouco antes da hora fixada. Tristão
sobe sozinho para uma pequena barca e, à força de remos, empurra-a
para a ilha. Por seu lado, o Morholt deixou o navio e toma lugar noutra
barca para ir ter com Tristão à ilha, enquanto os outros irlandeses
ficam a bordo para aguardar de longe o desenlace do combate. Tristão
salta para a margem e, com o pé, empurra a barca para o mar. O
gigante, no mesmo instante, amarra a sua a um tronco. “Por que é que
não amarraste a tua barca como eu fiz à minha?” - pergunta o gigante.
“Para quê? - responde Tristão. - Para levar o vencido morto ou ferido de
morte, uma única barca chega ao vencedor.” A multidão dos
cornualhenses, concentrada na margem, tem os olhos fixos no local da
batalha e procura adivinhar-lhe as peripécias.
O Morholt, admirando o valor e a valentia do adversário, propõelhe
um acordo: “Renuncia à batalha; dar-te-ei em troca a minha
amizade e partilharei contigo os meus tesouros.” Tristão recusa com
desdém. Ambos começam o combate a pé, ferozmente erguidos um
contra o outro e brandindo as lanças. “Fica sabendo - disse o Morholt a
Tristão para assustá-lo - que cada ferimento da minha lança é mortal; a
ponta está envenenada por artes de magia e não encontrarás nenhum
médico que te cure.” Em resposta, Tristão assenta um rude golpe no
lorigão do gigante, mas o seu ferro não consegue trespassar as malhas.
O Morholt riposta com um terrível golpe da sua arma: atravessando a
couraça do bravo, a ponta envenenada enterra-se na anca e penetra até
o osso, mas a haste quebra-se e voa em pedaços sob a força do choque.
Tristão puxa logo da espada, o Morholt desembainha a sua e as duas
lâminas entrecruzam-se soltando faíscas que a multidão por vezes
avista da margem. Subitamente, a espada de Tristão embate com tal
violência no capacete do gigante que a lâmina corta o metal e se lhe
enterra no crânio. Tristão tenta arrancar-lha, mas quando a sacode com
toda à energia, o aço range e quebra-se; a lâmina ficou fendida e um
fragmento de aço continua enterrado no crânio do gigante. Ferido de
morte, o Morholt foge com um grito terrível e vem abater-se na margem
à vista dos seus homens, que ficaram no navio. Tristão persegue-o com
a sua chacota: “Conquistaste então o tributo da Cornualha! Leva-o;
nunca mais virás reclamá-lo!” Entretanto o Morholt é recolhido pelos
companheiros, que o içam, ainda com vida, para a nau e se fazem à vela
com ele para a Irlanda.
Tristão, por seu lado, subiu para a barca do Morholt, soltou-a da
margem e aproou para a costa. Quando o povo da Cornualha a viu
perfilar-se no mar, reconheceu o esquife do gigante irlandês, mas
quando a barca emergiu do cimo de uma vaga, mostrou um guerreiro
que se erguia na proa, os braços em cruz: era Tristão. Imediatamente
vinte barcas lançaram-se ao seu encontro e os rapazes jogaram-se ao
mar para escoltá-lo. O bravo, de um salto, lançou-se no areal, e as mães
deitavam-se de joelhos para beijar- lhe os pés. Marcos recebeu-o com
manifestações de alegria e levou- o imediatamente para o seu palácio,
mas mal Tristão entrou, o seu vigor juvenil foi por sua vez vencido pela
força do veneno e ele caiu sem sentidos.
IV
A BARCA SEM VELA NEM REMOS
OS SERVOS do rei apressaram-se a levantar Tristão e
transportaram- no para uma cama, num dos quartos do palácio. Os
mais hábeis médicos foram chamados à sua cabeceira, mas foi em vão
que examinaram a profunda chaga que trazia do lado: era negra e fétida
e não se tornava difícil adivinhar que fora feita por uma arma
envenenada. Nenhum físico conseguiu descobrir a natureza do veneno
nem levar remédio ao mal que causava. Em breve as dores se tornaram
tão vivas que o bravo não podia pregar olho, nem de noite nem de dia, e
também perdeu o apetite e a sede e tornou-se magro e fraco. Das suas
chagas exalava um cheiro tão odioso que ninguém conseguia
permanecer muito tempo perto dele; só o fiel Gorvenal e Dinas de Lidan
se conservavam junto do seu leito. O próprio rei Marcos espaçava as
visitas ou contentava-se em pedir notícias do ferido.
Tristão, vendo que o odor das suas chagas importunava os
íntimos do palácio, não quis ser pesado a ninguém: fez com que o
transportassem para uma cabana, que Gorvenal, a seu pedido,
mandara construir num lugar isolado, à beira-mar. Aí, deitado sozinho
diante das vagas pelas quais deixava errar o olhar, Tristão aguardava a
morte. Todavia a intrepidez do seu coração inspirou-lhe o pensamento e
o desejo de tentar a aventura no mar: recordou-se dos contos antigos,
populares entre os celtas, que mostravam heróis infelizes confiando-se à
sorte das correntes e das tempestades e aportando em ilhas longínquas
e maravilhosas onde fadas e seres mágicos curavam, com encantos
poderosos, doenças e feridas. Conjurou então o rei Marcos para
conceder-lhe este dom: partir além-mar para costas desconhecidas -
não sabia onde - a fim de experimentar se Deus lhe concederia, no
termo de uma longa viagem, a cura que ainda esperava.
O Rei Marcos, primeiro assustado com a audácia deste projeto,
pôs dificuldades em consentir no desejo de Tristão. Depois, vendo que
as suas recusas contrariavam o sobrinho e pareciam agravar-lhe o mal,
cedeu à sua instância, de acordo com Gorvenal. Tristão foi colocado,
como era seu desejo, numa simples barca, sem vela, nem remos, nem
leme, sozinho, sem nenhum companheiro. Só tinha ao alcance da mão
alguns alimentos e a sua boa harpa, que não cessara de tocar desde
que fora ferido, pois o canto e o som dos instrumentos haviam-se
tornado a sua única consolação. Quando acabaram os preparativos,
Gorvenal e o senescal Dinas de Lidan, reprimindo as lágrimas,
empurraram para o alto mar o frágil esquife onde acabavam de depor o
amigo. A barca desapareceu pouco a pouco no horizonte.
Durante sete dias e sete noites, as vagas arrastaram-no sem
tréguas, ao sabor dos ventos e das correntes. Por vezes, Tristão tocava a
harpa para acalmar a angústia e aliviar a dor. Uma manhã, de
madrugada, apercebeu-se de que o marulho o havia empurrado para
uma terra que jamais vira. Alguns pescadores que lançavam as redes,
intrigados com o canto melodioso que vinha daquela barca à deriva,
quiseram esclarecer o mistério: aproximaram-se e descobriram um
ferido deitado no fundo da embarcação e que parecia extremamente
fatigado. Perguntou-lhes que país era aquele onde o mar o atirara. “É a
Irlanda” - responderam, e, desejosos de socorrê-lo, rebocaram a barca
até ao porto vizinho de Weisefort, residência do rei Gormond. Grande foi
a emoção de Tristão ao ver que Deus o dirigira para a pátria do Morholt,
cuja irmã, poderosa feiticeira, residia no palácio de seu marido, o rei
Gormond. Mas já não era possível recuar e, uma vez que quisera tentar
a aventura, teria de ir até ao fim. Com risco de ser reconhecido pelos
antigos companheiros do Morholt como o vencedor e assassino do
gigante, Tristão deixou-se conduzir pelos pescadores até ao palácio do
rei. Gormond queria ver e ouvir o tocador de harpa estrangeiro, vindo de
além-mar cujos cantos haviam maravilhado os pescadores no porto.
Estendido numa padiola, Tristão respondeu às perguntas do rei: “Ire,
sou um jogral bretão. Meu nome é Tãotris. Vinha a bordo de um navio
norueguês. Uns piratas atacaram a equipagem para se apoderarem da
carga. No decurso da abordagem, recebi um grave ferimento e devo a
minha salvação a uma barquinha sem vela, nem remos, nem leme, para
a qual me consegui içar com a minha querida harpa.” O rei Gormond
declarou imediatamente que queria mandar tratar o ferido e que a
rainha sua mulher encontraria sem dúvida alguma os remédios para
curá-lo.
Nenhum dos assistentes reconheceu no pretenso Tãotris o
valoroso combatente da ilha de Saint-Samson e o assassino do Morholt,
de tal modo o veneno lhe havia deformado as feições e enfraquecido o
corpo. A rainha Isolda, a pedido de seu marido, tratou de curar o ferido.
A feiticeira, a própria que havia preparado o veneno para nele
mergulhar a ponta da lança do irmão, descobriu sem dificuldade o
tratamento eficaz para destruir o efeito da peçonha que havia destilado.
Mandou colocar na chaga um emplastro, que ele conservou durante
todo o dia e que rapidamente suprimiu o mau cheiro; depois abriu a
ferida e tirou toda a carne morta, retirou com cuidado o veneno que
ainda aí existia e a carne viva ficou com melhor aspecto. À noite, pôs
sobre a chaga ervas salutares, que, em pouco tempo, fizeram
desaparecer a inchação e a infecção.
Quando o dito jogral entrou em convalescença, a rainha, como era
uso na época, confiou os cuidados do hóspede à filha, Isolda, então com
doze anos, e cuja cabeleira loura tinha o brilho do ouro. A bela criança
cumpriu de boa vontade todos os deveres da hospitalidade em relação
ao hábil menestrel que o rei Gormond recolhera sob o seu teto. Fazia
companhia ao hóspede de seu pai durante todo o dia, pensava-lhe a
ferida e aplicava-lhe os remédios prescritos pela rainha. Tãotris, em
troca, tocava para distraí-la lais bretões de aventura e de amor,
fazendo-se acompanhar pela harpa. Melhor ainda, ensinava-lhe a arte
de tocar os instrumentos e de cantar com esmero. A real criança
parecia encantada e mostrava-se uma aluna dócil e jovial para o cantor
errante.
Todavia, como o estrangeiro reencontrara pouco a pouco o vigor
do seu corpo e a beleza das feições, veio o dia em que correu o risco de
ser reconhecido pelos companheiros do Morholt e de sofrer da sua parte
terríveis represálias. Não podia duvidá-lo quando ouvia a loura Isolda
contar-lhe sem desconfiança o regresso à Irlanda do cadáver do tio,
cosido pelos seus homens numa pele de veado. Do crânio do gigante
havia extraído um fragmento deixado pela espada do vencedor, e a
rainha guardava-o preciosamente num escrínio como relíquia de seu
irmão. Tristão compreendeu então que devia desaparecer o mais
depressa possível. Um navio mercante aprontava-se para deixar o porto:
subiu a bordo com acordo dos marinheiros e fez-se a vela com eles para
longe da Irlanda. Algumas semanas mais tarde aportava na Cornualha.
Jovens e velhos vieram recebê-lo e regozijaram-se como se ele
regressasse de entre os mortos.
V
A DONZELA DOS CABELOS DE OURO
TRISTÃO glorioso vencedor do Morholt, curado, contra toda a
esperança, do seu horrível ferimento, ocupava doravante o primeiro
lugar na corte de Marcos. O rei resolvera, no seu íntimo, tomá-lo por
herdeiro e legar-lhe o trono. Havia tomado o partido de envelhecer sem
descendente e renunciara ao casamento.
Vários barões que viviam na comitiva de Marcos não tardaram a
adivinhar-lhe o intento, que julgavam, sem motivo, inspirado por
Tristão. Os mais encarniçados eram quatro barões que a inveja havia
lançado contra o bravo e cujo ódio não recuava ante nenhuma traição.
Por isso, os chamavam “os barões traidores”. O pior destes invejosos era
Audret, também sobrinho de Marcos, e que durante muito tempo
alimentara a esperança de recolher a sucessão do tio; a sua esperança
desenganada tinha-se transformado em furor contra aquele que
considerava seu feliz rival. Os outros três traidores chamavam-se
Guenelon, Gondoïne e Denoalen. Freqüentemente conversavam em
segredo sobre o que tomavam por manobras interesseiras de Tristão e
diziam entre si: “Este homem nefasto é um feiticeiro e uma alma de
Satanás. A sua cura é inexplicável por meios naturais, pois o seu
ferimento era daqueles a que um homem não escapa. A sua vitória
assombrosa sobre o Morholt, a sua misteriosa navegação numa barca
sem vela nem remos, eis o que já pressupõe uma intervenção diabólica.
Nós o vimos atingido por um ferimento incurável, quase agonizante, e
ei-lo agora fresco e ágil, o corpo intacto e o coração arrogante! É
necessário que tenha um trato com os espíritos infernais e possua o
segredo das artes maléficas. Certamente que as usará um dia contra
aqueles que, como nós, o abandonaram no momento do seu infortúnio:
mais tarde ou mais cedo, vingar-se-á, se não tomarmos nós a
dianteira.” Assim, os quatro traidores semeavam a dúvida à volta deles;
e aqueles que, como eles, se haviam desinteressado de Tristão quando
este estava em perigo de morte temiam pela sua vida. “Se Tristão é um
dia nosso senhor legítimo acrescentavam os traidores -, terá todos os
direitos sobre nós. É, pois, necessário que o rei se case.”
Um dia dirigiram-se todos juntos à corte e expuseram a Marcos
que o interesse do reino e dos homens da Cornualha exigia que ele se
casasse sem mais tardar em vista a ter um herdeiro. Se, ainda jovem
como era, não desposasse uma mulher que lhe pudesse dar um
sucessor, exporia a Cornualha a desordens e a guerras. Alguém
poderia, sem direito, pretender reinar na sua terra. “Também -
acrescentavam - não vos continuaremos a servir de modo algum se não
seguis o nosso conselho.” O rei respondeu-lhes: “Senhores, agradeçovos
a amigável intenção, pois quereis aumentar a minha honra e louvor.
Para dizer a verdade, nenhumas desordens deveis temer quando da
minha morte. Deus deu-nos um bom herdeiro, que Ele o profeta e
conserve. Tristão. Enquanto ele viver, ficai sabendo que nenhuma
mulher casada trará coroa nesta corte.” Marcos acrescentou que esse
assunto só a ele dizia respeito e que o rei era livre, como qualquer dos
seus vassalos, de contrair casamento ou, se isso lhe convinha mais, de
se abster dele. Então os traidores encontraram no próprio Tristão um
aliado inesperado: para melhor provar que nunca incitara o tio, por
interesse pessoal, a renunciar ao casamento, juntou as suas instâncias
às dos inimigos. Tentou persuadir o rei de que este devia procriar um
herdeiro legítimo e evitar todas as disputas à volta da sucessão. Marcos,
não ousando fazer frente a todos os vassalos, ligados contra ele, quis
dar-se tempo para refletir: “Senhores - disse-lhes -, dai-me tempo para
preparar a minha resposta. Vinde ver-me de novo dentro de quarenta
dias, e far-vos-ei conhecer a minha decisão.”
Quando chegou o dia fixado, o rei estava tomado de
preocupações. Sozinho no salão do castelo, prestes a receber os barões,
procurava ainda um meio de iludir a sua exigência. Nesse instante, por
uma janela aberta sobre o mar, entraram duas andorinhas soltando
gritinhos e disputando um longo cabelo louro de mulher que uma delas
trazia no bico; depois, bruscamente, assustadas com um gesto do rei,
as duas intrusas afastaram-se rapidamente, não sem terem deixado
cair na sala o magnífico cabelo, mais fino e mais brilhante que um fio
de ouro. Marcos inclinou-se e apanhou-o com precaução; examinou-o
longamente, admirou-o e uma brusca iluminação atravessou-lhe o
espírito.
Quando Tristão entrou, seguido pelos outros barões, fitou-os um
instante com um sorriso malicioso e disse: “Alegrai-vos, senhores; quero
seguir o vosso conselho e resolvi, após bem pensar, arranjar mulher.
Ficai sabendo que não quero outra que não seja aquela a quem
pertence este cabelo de ouro. Uma andorinha vinda do mar trouxe-mo
no bico e é um feliz presságio que não quero de modo algum
negligenciar.” Ao dizer estas palavras, estendia-lhes o cabelo entre os
dedos e fazia cintilar no belo fio de ouro um raio de sol.
Os barões sentiram-se gozados e como que injuriados pelo rei:
sob a aparência de realizar o seu desejo, designava-lhes por zombaria
uma mulher impossível de encontrar. “Este estratagema diziam entre si
- é uma nova artimanha de Tristão para melhor assegurar a herança do
tio.” Quanto a Tristão, esse não cessava de contemplar o cabelo de ouro,
e a sua vista acordava-lhe na alma uma agradável recordação. Entre
todas as moças louras que vira, vindas dos países do Norte, nenhuma -
tinha a certeza - tinha uns cabelos tão semelhantes a um fio de ouro, a
não ser uma única: Isolda, a filha do rei da Irlanda, a que o tratara há
pouco tempo, no palácio de seu pai, o rei Gormond, e à qual ensinara a
tocar os instrumentos. Enquanto os outros barões continuavam a
bradar e a trocar em voz baixa palavras hostis a Tristão, este se voltou
para o rei Marcos e disse: “Por Deus, sire, para vos dizer a verdade
conheço uma única donzela cujos cabelos de ouro assemelham-se a
esse: é Isolda, a loura, a filha única do rei da Irlanda. Bem sabeis como
a conheci no seu país, assim como a seu pai e a sua mãe. Entre todas
as filhas de rei que me foi dado encontrar, ela é, sem contestação, a
mais bela e a mais bem instruída. É excelente no canto e no toque dos
instrumentos, e aprendeu com a mãe as virtudes secretas das ervas,
das flores e das raízes, de modo que não há melhor médico que esta
jovem. Digo-o por eu próprio ter feito a experiência.” Marcos respondeulhe:
“Não ignoras, querido sobrinho, que há séculos a inimizade e o ódio
reinam entre a Irlanda e a Cornualha e que eles suscitaram entre os
dois povos guerras sangrentas. Se este cabelo de ouro pertence
realmente à jovem Isolda, como esperar que o rei Gormond consinta em
dar-me a filha em casamento? Se envio mensageiros a pedir a mão de
Isolda, receio que seu pai os mate vergonhosamente, sem mesmo se dar
ao cuidado de me responder: Tal afronta valer-me-ia zombarias e
vergonha.”
O senescal Dinas de Lidan interveio então: “Ire, acontece com
bastante freqüência reis travarem entre si longas guerras com grande
dano e grande perda de homens; depois, rejeitando cólera e ódio,
transformam a inimizade em paz e em amor, casando com príncipes,
outrora seus inimigos, as suas filhas ou irmãs. Isolda é a única filha do
rei Gormond. Se pudéssemos realizar ditosamente esse casamento e
essa aliança, as coisas poderiam tomar uma feição tão favorável que
talvez vós viésseis a reinar na Irlanda um dia.”
O rei respondeu: “Se esse projeto pudesse ser executado com
honra para mim, não desejaria outra mulher que Isolda, pois Tristão
louvou-me grandemente nela a cortesia, o senso e todas as qualidades
convenientes a uma mulher. Pensai, pois, no meio de obtê-la para
mim.” Dinas continuou: “Ire, ninguém no mundo vo-la pode obter,
exceto Tristão, vosso sobrinho: no decurso da sua viagem à aventura,
foi pelo rei Gormond recolhido e, se ficou curado do seu terrível
ferimento, deve-o certamente à rainha e à sua filha. Se em tal se
empenhar, conquistará seguramente a jovem pela astúcia ou pelo
valor.”
Os traidores ouvem que o senescal Dinas de Lidan propõe enviar
Tristão à Irlanda para pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a
filha do rei Gormond. Os invejosos ficam perplexos e não sabem que
atitude tomar. Gozam secretamente com o fato de que, se Tristão
empreender esta nova viagem, mais que aventurosa, junto dos piores
inimigos da Cornualha, não voltará nunca mais. No entanto, persegueos
uma inquietação: não irá este diabo de homem, este feiticeiro, uma
vez mais ser bem-sucedido contra qualquer esperança humana e voltar
triunfante, ornado com um novo prestígio?
Por seu lado, Tristão compreende que, se recusar empreender a
busca da jovem, fornece aos traidores um novo pretexto para acuaremno
de cobiçar para si próprio a herança do rei. Então responde com
grande senso e de boa vontade: “Ire, não devo recusar esse
empreendimento, uma vez que sou o mais bem preparado para ele. Na
verdade, conheço a Irlanda e os seus habitantes, conheço o rei, os seus
principais barões, a rainha e a jovem Isolda, mas matei o irmão da
rainha: se lá vou pedir que a filha vos seja dada e se o rei sabe quem
sou, não me deixará regressar vivo. Todavia, porque desejo que possais
ter um herdeiro legítimo, quero empreender essa busca e, para
aumentar a vossa fama, realizá-la, se Deus o permitir, na medida das
minhas possibilidades. E se, por infelicidade, não puder conquistar
Isolda, jamais voltarei à vossa corte.” Em seguida acrescentou: “Ire,
confiai-me esse cabelo, quero mandá-lo entrelaçar no estofo da minha
túnica de orla dourada e tenho a certeza de que o seu brilho se
sobreporá ao do metal mais puro. Mandai-me equipar, se tal é a vossa
vontade, uma bela nau, a fim de poder embarcar com cem rapazes da
vossa terra.” O rei consentiu-lho de bom grado.
Tristão levou Gorvenal consigo para esta travessia. Como
companheiros, escolheu na corte do rei cem jovens vassalos de nobre
condição, entre os mais ousados e os mais bravos; arranjou as
melhores armas e bons cavalos. A nau ficou bem abastecida de víveres,
bebidas, dinheiro; carregaram-na com cereais, peles, farinha-flor, mel e
vinho. Acabado o carregamento, vogam para levar a mensagem aos
inimigos. Mas Tristão ainda hesita se pedirá a moça ou a atrairá a
bordo por meio de qualquer astúcia para raptá-la. Se a pede, arrisca-se
a uma recusa brutal; e como raptá-la pela força a um pai tão poderoso?
Discute-o com os companheiros, mas nenhum deles o sabe aconselhar;
todos gemem por terem sido designados para um empreendimento tão
perigoso.
Tristão atravessa o mar da Irlanda em grande dúvida e cuidado.
Decide que os seus companheiros e ele far-se-ão passar por
mercadores, e que, para agir, esperarão por encontrar um estratagema.
Noite e dia, navegaram. Tristão soube que Gormond, o rei da Irlanda,
encontrava-se em Weisefort. Lançaram âncora diante do porto: era,
para a gente da Cornualha, a terra perigosa por excelência. Tristão
enviou dois dos seus companheiros, vestidos com cotas de burel e
capas de camelão grosseiro, ao palácio do rei Gormond com a missão de
obterem um salvo-conduto para venderem as mercadorias. Os dois
mensageiros saudaram o rei cortesmente e disseram-lhe: “Ire, somos
mercadores e transportamos as nossas mercadorias de terra em terra
para ganhar dinheiro. Carregamos o navio na Bretanha e queríamos
atingir a Flandres, mas ventos contrários empurraram-nos para aqui.
Disseram-nos no porto que as mercadorias se vendiam bem neste país.
Se obtivermos de vós a autorização para vendermos o nosso vinho, o
nosso queijo e os nossos tecidos, ancoraremos a nossa nau e faremos
comércio com os vossos súditos. Se o não consentirdes, sire,
levantaremos ferro para outro país.” O rei respondeu: “Dou-vos
permissão e liberdade para traficardes nesta terra em paz e à vontade.
Ninguém vos incomodará nem vos fará mal. Encontrareis aqui o melhor
acolhimento e sereis livres de partir quando vos aprouver.” Os
mensageiros agradeceram ao rei, deram-lhe presentes e regressaram à
nau. Aí, com os companheiros, passaram o dia a divertir-se, a jogar
xadrez e gamão e a tagarelar.
VI
VITÓRIA SOBRE O DRAGÃO DA IRLANDA
NO DIA seguinte, ao acordarem, Tristão e os companheiros
ouviram gritos horríveis de homens e de mulheres elevarem-se nas ruas
de Weisefort: todo o povo corria para o mar como que a fugir de um
misterioso perigo. Esse terror era causado por um dragão que infestava
o país; todos os dias descia à cidade e aí fazia grandes devastações. A
todos os que conseguia alcançar, matava com as chamas que vomitava.
Em todo o reino, não havia ninguém suficientemente forte nem
suficientemente bravo para lhe ousar fazer frente; mal o ouviam
aproximar-se, todos, nobres, burgueses e vilãos, fugiam à porfia para
evitar a morte.
O rei Gormond mandara proclamar por toda a sua terra que, se
houvesse um homem bastante corajoso para matar o dragão, lhe daria
a filha em casamento e metade do reino, desde que fosse de nascimento
nobre. Havia confirmado este compromisso com cartas seladas e
ordenara que fossem lidas em todos os lugares pelos arautos. Muitos,
aliciados com esta promessa, haviam tentado o empreendimento, mas o
dragão matara-os e já não restava ninguém que ousasse esperá-lo na
estrada que seguia; os mais aguerridos logo deitavam a fugir e
escondiam-se.
Tristão, ao ver fugir os irlandeses, interrogou-os e ficou sabendo
tudo acerca do dragão e da promessa feita a quem o matasse. Indagou
do covil onde o monstro pernoitava, nos rochedos, e da hora em que
descia à cidade. Depois, esperou até à noite do primeiro dia sem nada
dizer a ninguém do seu desígnio, e ele próprio preparou o corcel e as
armas para o combate. No dia seguinte, aos primeiros alvores da
manhã, o dragão, segundo o seu costume, arremeteu em direção à
cidade. Tristão, mal ouviu o grito estridente do animal, cavalgou ao seu
encontro e nenhum dos seus companheiros disso se apercebeu. No
caminho encontrou um bando de homens armados que fugiam a toda
velocidade dos cavalos, agarrou um deles pelos cabelos ruivos e
obrigou-o a parar. Ele contou-lhe que o monstro os seguia e disse-lhe:
“Voltai para donde viestes, senão o dragão não tardará a matar-vos.”
Tristão não ligou a este conselho de covarde e foi ao encontro do
monstro.
O dragão tinha dois cornos na testa, as orelhas largas e peludas,
os olhos cintilantes à flor da cabeça como carvões ardentes, o alto
focinho erguido como o de uma serpente fantástica, a língua de fora,
cuspindo por todas as partes fogo e veneno, o corpo escamoso, garras
de leão e a cauda de uma serpente. O monstro viu Tristão: ruge e incha
o corpo. O bravo junta as forças e, cobrindo-se com o escudo, pica o
corcel com tal vigor que o ginete, todo eriçado de medo, salta contra o
animal. A lança de Tristão embate nas escamas e voa em pedaços.
Imediatamente, o bravo desembainha a espada, brande-a e vibra um
golpe terrível na cabeça do dragão, mas sem mesmo lhe arranhar a pele.
O monstro sentiu a pancada: lança as garras contra o escudo, enterraas
nele e faz voar as presilhas. A peito descoberto, Tristão ainda o
procura com a espada e atinge-o nos flancos com um golpe tão violento
que o ar vibra. Em vão: não o consegue ferir. Então, o dragão vomita
pelas narinas um duplo jato de chamas: O lorigão de Tristão fica da cor
do carvão, o cavalo cai e morre. Mas logo Tristão se levanta e enterra a
ponta da espada na garganta do monstro, e a penetra inteiramente lhe
trespassando o coração. O dragão solta uma última vez o seu terrível
grito e morre. Quando Tristão o viu morto, cortou-lhe a língua até a
raiz, pois queria conservá-la como um troféu da vitória, e dissimulou-a
no calção, entre a carne e o tecido. Em seguida, completamente
aturdido pelo fumo acre que o sufocava, dirigiu-se para o charco cujas
águas calmas brilhavam no vale, perto de um bosque, para aí beber.
Quando chegou à beira da água, a língua aqueceu contra o seu corpo O
veneno que dela se escapava infectou-lhe o sangue e paralisou-lhe os
membros. O corpo tornou-se débil, lívido e tumefacto. Nas altas ervas
que bordejavam o pântano, o herói caiu inanimado. Aí ficou estirado,
impotente para ajudar-se a si próprio, a não ser que algum viandante o
viesse socorrer.
Ora, o rei Gormond tinha um senescal chamado Aguinguerran, o
Ruivo, presunçoso e de má índole, dissimulado, manhoso, mentiroso e
velhaco. Afirmava amar a jovem Isolda e todos os dias, na esperança de
obtê-la para mulher, armava-se contra o dragão. Mal via o monstro,
fugia a sete pés, e tão covardemente que, se lhe oferecessem nesse
momento todo o ouro da Arábia, nem tentaria voltar-se. Aguinguerran
era o fugitivo que Tristão, no caminho da aventura, tinha parado,
agarrando-o pelos cabelos. Os outros fugitivos eram os homens do
senescal. Ao fim de algum tempo, Aguinguerran ousou arrepiar
caminho para ver o que se havia passado. Encontrou o cadáver do
dragão e não viu o cavaleiro que o parara e interrogara, mas
unicamente o seu escudo abandonado no chão e o corcel morto; pensou
que, antes de morrer, o monstro matara e devorara o cavaleiro. Então,
cortou com a espada a cabeça do monstro, a fim de apresentá-la ao rei
Gormond e de reclamar para si próprio a bela recompensa prometida.
Regressou à cidade e nela entrou a galope, segurando na ponta do
braço a cabeça sangrenta do dragão e gritando: “Matei-o! Matei-o!”
Quando entrou no salão do palácio, disse ao rei: “Sire, libertei o
reino, vinguei os teus homens e o teu dano, paga-me agora, dá- me
Isolda, a tua filha; é a recompensa que me pertence, se não te queres
desonrar renegando a tua palavra!” O rei, vendo a cabeça do monstro,
não se recusou a fazer justiça ao pedido do senescal, mas, surpreendido
com o fato de um tal covarde ter realizado uma tão grande proeza,
impôs-lhe um prazo: “Quero reunir o conselho dos meus barões antes
de te dar a resposta e de manter, se houver razões, o que prometi.”
Quando se espalhou a nova de que a princesa lhe seria dada e foram
aos aposentos das mulheres contá-la a Isolda, esta se encheu de
angústia e de dor, pois sentia somente aversão e desprezo pelo senescal:
mesmo que lhe oferecessem como presente de noivado o império do
mundo, não o poderia amar. Disse a sua mãe: “Nunca consentirei no
que quer meu pai: não casarei com esse homem! Não, Deus não me
deseja tanto mal que me obrigue a aceitá-lo! Prefiro matar-me com um
punhal a suportar a vergonha de ser entregue à mercê de um velhaco e
de um covarde! Donde lhe teriam vindo a coragem, a força e o valor
perante o monstro, uma vez que sempre se mostrou medroso e poltrão
perante os homens? É uma mentira inventada por ele para eu lhe ser
entregue. Mãe, vinde comigo: vamos ver o cadáver do monstro; temos de
encontrar, morto ou vivo, aquele que o matou.” “Pois sim, querida filha.
E que Deus nos ajude.”
Saíram do castelo por uma porta secreta que dava para o pomar,
unicamente acompanhadas pelo lacaio Périnis e por Brangia, a criada.
Do pomar, um estreito atalho conduziu-as ao campo, onde finalmente
encontraram o dragão morto e o cavalo, estendido na areia, queimado e
denegrido. “Deus sabe - disse Isolda - que o senescal jamais montou
este cavalo! Não está ferrado nem aparelhado segundo o costume da
Irlanda. . . O estrangeiro a quem este cavalo pertence é, sem dúvida
alguma, quem matou o dragão; mas quem sabe o que lhe aconteceu?”
Isolda, com a mãe, procurou tanto que descobriu o herói desfalecido à
beira do pântano, entre as altas ervas. Ainda respirava. “Encontramos!”
- exclamou Isolda. Depois de as duas mulheres terem prestado ao
desconhecido os primeiros socorros, este voltou a si, abriu os olhos e
disse: “Santo Deus! Nunca senti tal torpor! Quem sois? Onde estou?”
“Não temas nada - respondeu a rainha. - Este mal, se Deus quiser, não
se agravará.” Périnis e Brangia transportaram o ferido tão secretamente
para os aposentos das mulheres que ninguém no palácio disso se
apercebeu. Aí, Isolda e a mãe tiraram-lhe a arma dura e encontraram
no calção a língua do monstro. A rainha preparou remédios para
neutralizar a ação do veneno: colocou no corpo do desconhecido um
emplastro e deu-lhe para beber uma infusão de ervas mágicas que lhe
proporcionou um grande alívio. Não havia outro médico além da rainha,
assistida pela jovem Isolda, que o tratava e servia.
VII
A BRECHA DA ESPADA
NO QUARTO da rainha, Tristão é bem tratado e cuidado.
Recupera pouco a pouco a força e a saúde. A rainha pergunta-lhe:
“Amigo, quem és? Donde vieste? Como mataste o dragão?” “Rainha, sou
um vassalo da Flandres e percorro as terras estrangeiras à procura de
aventuras e façanhas. Quando cheguei a Weisefort, ouvi falar dos danos
que o dragão causava a todo o vosso povo e armei-me, firmemente
decidido a defrontá-lo e vencê-lo. Só queria experimentar a minha força
e a minha resistência contra esse monstro. Ora, aconteceu, pela
vontade de Deus, que o matei. Como troféu da vitória, cortei-lhe a
língua e a escondi no meu calção, a fim de poder apresentá-la ao rei
Gormond. Quando desmaiei nas ervas do pântano, julguei ter chegado a
minha hora; estava tão profundamente desfalecido que não vi quem se
aproximou de mim.”
A rainha disse-lhe: “Amigo, sou a rainha da Irlanda. Fui ter
contigo com a minha filha Isolda. Mandamos trazer-te para aqui em
segredo e afastamos o veneno do teu corpo: eis-te curado!” “Senhora,
que Deus me permita mostrar-vos o meu reconhecimento pela vossa
ajuda; quero doravante servir-vos o melhor que possa.” “Dir-te-emos,
então, amigo, que recompensa esperamos de ti: bravo como és, podes
ser-nos de grande socorro. O nosso senescal, Aguinguerran, o Ruivo,
pretende ser o matador do monstro e quer que a minha filha Isolda lhe
seja entregue em recompensa com metade deste reino, como o rei meu
marido prometeu. Mas Isolda, minha filha, recusa-se a pertencer ao
senescal, pois ele é um louco inchado de desmesura, velhaco e perverso,
sem fé, astuto e invejoso, odiado de todos, covarde e cheio de outros
vícios vergonhosos. Isolda preferiria matar-se a entregar-se a ele. A
cortesia da minha filha e a vilania desse homem são coisas que não se
podem harmonizar. É por isso que temos de provar perante o rei que o
senescal não matou o dragão. Tu, que mataste o monstro, se queres
assumir contra esse homem a defesa da jovem e de todo o reino,
adquirirás grande fama nesta terra. Além disso, se o desejares, o rei
dar-te-á sem hesitar a filha e a terra que prometeu ao vencedor.” “Deus
sabe que - respondeu Tristão -, para vos servir, quero desmascarar o
senescal e provar que não matou o dragão, pois apresentarei perante a
corte a língua do monstro que cortei logo após o ter morto. Se ele quiser
sustentar a sua afirmação por meio de uma batalha, defenderei Isolda
contra ele, que não a obterá, pois reclama-a sem razão, com mentiras,
fanfarronice e presunção.”
A rainha afastou-se então, mas a jovem Isolda não cessou de
servir Tristão o melhor que pôde e de o prover com todas as iguanas
que aumentam o vigor do corpo. A sua força voltava sensivelmente e o
rosto reencontrava de dia para dia a sua máscula beleza. Um dia em
que Tristão estava sentado numa bacia de mármore antigo, onde
tomava um banho de água salutar, a jovem Isolda assistia-o, a fim de
curar por completo o corpo do valente. Observou longamente o seu
rosto e o seu peito e pensou consigo mesma: “Se este homem é tão
valente como belo, saberá sustentar um rude combate contra o
senescal.” Quando se inclinou por cima da banheira, Tristão viu de
perto os seus longos cabelos louros; admirou como tinham a mesma cor
de ouro do cabelo levado a Marcos por uma andorinha. O seu olhar foi
da cabeleira de Isolda ao cabelo que mandara tecer na túnica,
pendurada perto. Na sua alegria, viu-se a sorrir à idéia de que havia
sido bem- sucedido nesta busca, julgada por outros ilusória, a da
donzela dos cabelos de ouro.
A jovem apercebeu-se deste sorriso, admirou-se e, por timidez
juvenil, supôs que Tristão divertia-se com a sua falta de jeito. “Por que
terá sorrido este nobre estrangeiro? Terei cometido por falta de
educação alguma coisa inconveniente? Negligenciei algum dos serviços
que uma jovem de alta posição social deve prestar ao seu hóspede?
Talvez devesse ter o cuidado de lavar a lâmina da espada, ainda
enegrecida pelo sangue impuro do dragão?” Tira a dura lâmina da
bainha para a lavar e enxugar, mas apercebe-se de que esta apresenta
unia longa brecha; os contornos da fenda trazem-lhe imediatamente à
memória os do fragmento de aço que a mãe outrora extraíra do crânio
do Morholt. Hesita um instante, observa uma vez mais a rotura da
espada, quer libertar-se da dúvida. Vai direita ao escrínio onde está
guardado o fragmento de aço, retira-o e ajusta-o a tremer à brecha do
metal: o ajustamento é tão perfeito que mal se nota o vestígio da rotura.
Precipita-se então sobre Tristão, trêmula de cólera, e, fazendo girar a
grande espada sobre a cabeça do ferido, grita: “Miserável, és Tristão de
Leônis, o assassino do Morholt, o meu querido tio, e foi com esta espada
que lhe fendeste o crânio! Soubeste esconder-te durante longo tempo,
mas de hoje em diante ninguém mais acreditará nas tuas mentiras!
Morre, pois, por tua vez com esta mesma espada, a fim de ser vingado o
assassínio do meu tio!”
Tristão quis fazer um gesto para parar o seu braço. Em vão: o
corpo ainda estava entorpecido e só o espírito continuava ágil. Falou,
pois, habilmente: “Espera! Deixa-me dizer-te unicamente algumas
palavras! Se estás resolvida a matar-me sem defesa neste banho, seja,
morrerei. Mas para te poupar no futuro longos arrependimentos, ouveme
um momento, filha de rei! Fica sabendo que não só tens o direito,
mas também o dever de me matar: sim, tens direito sobre a minha vida,
uma vez que ma conservaste e devolveste duas vezes. A primeira vez,
quando fingi ser uni jogral chamado Tãotris, com a tua mãe, curaste a
minha ferida. Não lamentes ter sarado esse ferimento: não o recebera
eu de teu tio, o Morholt, em leal combate? Não matei o Morholt à
traição: lançara-me o seu desafio, como a todos os homens da
Cornualha. Não era meu dever defender o meu povo e o meu corpo?”
“Pela segunda vez, acabas de me salvar levantando-me,
inanimado, das canas do pântano, depois do meu combate com o
dragão. Já que, por duas vezes, me salvaste da morte, podes reaver essa
vida que me conservaste. Mata-me, pois, se julgas com isso ganhar
louvor e glória. Não esqueças no entanto que aceitei ser o teu campeão;
comprometi-me a travar batalha para defender a tua honra contra
Aguinguerra, o Ruivo. Quando estiveres deitada entre os braços do
valente senescal, ser-te-á agradável pensar no teu hóspede ferido que
arriscou a vida para conquistar-te e que tu mataste no banho, sem que
tenha podido fazer um gesto para defender-se!”
Ao ouvir estas palavras, a jovem ficou um instante interdita,
depois o braço deixou cair lentamente a espada que havia brandido.
“Ouço palavras enganadoras - disse. - Não te surpreendi fitando-me a
sorrir? Por certo que podias troçar de mim ao veres a sobrinha bemamada
do Morholt ocupada a cuidar do teu banho como uma criada!”
“Não, de modo nenhum era essa a causa do meu sorriso: o que o fazia
nascer nos meus lábios era a vista dos teus cabelos louros, como
mulher alguma jamais teve. Comparava-os com o cabelo de ouro que
uma andorinha levou de além mar a meu tio, o rei Marcos da
Cornualha. E ele achou tão belo esse cabelo de ouro que jurou perante
os barões que nenhuma mulher, a não ser aquela a quem pertence este
cabelo, seria sua esposa. Parti pelo mar aventuroso em busca dessa
mulher e eis que te encontrei; por isso sorri. Vê esse cabelo cosido entre
os fios de ouro da minha túnica; a cor dos fios de ouro foi-se, o ouro do
cabelo não descorou.” Isolda tomou nas mãos a túnica de Tristão, viu o
cabelo de ouro e procurou inutilmente dissimular a emoção. Depois, a
perturbação deu lugar à indignação: “Então conquistaste- me matando
o dragão, mas, em vez de casares comigo, como é teu direito, queres
entregar-me ao teu senhor, o rei Marcos! Receberei a sorte de uma
cativa que um chefe de guerra obtém quando da partilha do saque? Ah,
sem dúvida, como o Morholt queria outrora trazer na sua nau a flor dos
rapazes e das donzelas da Cornualha para servirem a bel-prazer
senhores irlandeses, assim, por tua vez, em represália, gabaste-te de
levar na tua nau como uma escrava aquela que o Morholt mais amava
entre as donzelas!”
Isolda, deixando Tristão no banho, saiu e encaminhou-se para
outro quarto, onde estavam sua mãe e a criada Brangia, que fora, desde
a sua mais tenra infância, a companheira dos seus jogos e a confidente
dos seus pensamentos. Vendo a profunda inquietação de Isolda, as
duas mulheres perguntaram-lhe a causa. Ela contou-lhes como havia
reconhecido no matador do dragão Tristão de Leônis, o assassino do
Morholt, graças à brecha da espada: “Tê-lo-ia morto no banho com essa
mesma espada se ele não tivesse parado o meu braço com palavras
cheias de astúcia e de manha.” Com esta notícia, a própria rainha ficou
numa agitação indescritível, censurou Isolda por ter tido piedade do
assassino do tio e garantiu que ela própria iria fazer pronta e rápida
justiça. Mas Brangia, a sábia, a avisada, juntou-se a Isolda para
acalmar a cólera da rainha: “Senhora - dizia -, uma única coisa importa
neste momento: que vossa filha não seja de modo algum entregue ao
covarde senescal para vergonha e infelicidade de toda a sua vida.
Tristão de Leônis, visto que é ele o vencedor do dragão, deu-vos a sua
palavra de que libertaria Isolda das pretensões do senescal. Não será
essa a única coisa que conta para vós, presentemente? Vamos primeiro
ao mais urgente, e, quando Aguinguerran, o Ruivo tiver sido humilhado
e rejeitado, procuraremos um meio qualquer para impedir que Isolda
seja dada contra a sua vontade ao rei Marcos da Cornualha.” A rainha
da Irlanda reconheceu, como a filha, a sabedoria do conselho de
Brangia. As três estavam juntas no quarto da rainha, onde Tristão,
saído do banho, repousava num leito. Isolda, sem dizer uma palavra,
aproximou-se dele e, diante da rainha e de Brangia, em sinal de acordo,
beijou-o na boca.
Pouco depois, a rainha e a filha foram ter com o rei e
anunciaram-lhe que haviam finalmente descoberto o verdadeiro
matador do monstro. Isolda dirigiu-se ao pai nestes termos: “Ire,
recolhemos no quarto da rainha um homem pronto a provar que
libertou a vossa terra do flagelo e que a vossa filha não deve ser
abandonada a um covarde e, além do mais, a um mentiroso. Contudo,
sire, concedei-nos um dom.” “De boa vontade - disse o rei -, uma vez
que a minha mulher e a minha filha se unem para mo pedir!”
“Prometei-me que perdoareis ao matador do monstro os seus erros
antigos, por maiores que sejam, e que lhe concedereis a vossa paz.” O
rei não se apressou a responder, pois tinha por costume refletir
longamente antes de se decidir, mas acabou por dizer: “Já que assim o
quereis, outorgo-vos esse dom.” Isolda ajoelhou-se a seus pés e pediu:
“Pai, dai-me o beijo da paz e do perdão, em sinal de que o dareis
igualmente a esse homem!” E o rei fez o que a filha pedia. Ficou
combinado que a corte do rei se reuniria no dia seguinte de manhã para
escutar as afirmações contraditórias do senescal e do matador do
monstro. Entretanto, desde que Tristão havia furtivamente abandonado
o navio para combater o dragão, Gorvenal e os cem companheiros,
privados de qualquer notícia do seu senhor, desolavam-se por terem-no
perdido e procuravam em vão saber onde estava. Tristão enviou-lhes
secretamente Périnis, o lacaio de Isolda: devia avisar Gorvenal e os
outros cornualhenses para se dirigirem à assembléia dos barões da
Irlanda, todos juntos, no dia seguinte, paramentados e armados como
convinha aos mensageiros de um rei rico.
VIII
ISOLDA CONQUISTADA PARA O REI
MARCOS
NO DIA seguinte, quando da assembléia, grande foi a surpresa
dos irlandeses com o aspecto daqueles senhores, desconhecidos de
todos, magníficos e silenciosos. Um a um entraram, sentaram-se na
mesma fila, vestidos de cendal e púrpura. Os irlandeses diziam entre si:
“Quem são estes homens que nunca vimos? Donde vêm estes
estrangeiros?” Mas os cem homens de armas calavam-se e não se
mexiam dos lugares. Isolda e a mãe entraram por sua vez, levando pela
mão o seu protegido. Ao verem-no, todos os senhores cornualhenses
levantaram-se para saudar e prestar honras ao seu chefe. Logo de
início, Isolda fez seu pai renovar o juramento de perdoar ao
desconhecido, se este triunfasse sobre o senescal, todos os seus delitos
antigos, quaisquer que fossem. Depois, sem outro preâmbulo, revelou
que o seu campeão era Tristão de Leânis, o assassino do Morholt. A
despeito dos clamores hostis que provocou a nova, o rei considerou-se
como que ligado pela sua promessa e concedeu a Tristão, por amor de
sua filha, a remissão do assassínio do Morholt; a própria rainha
associou-se a este perdão. Isolda exclamou: “Rei, beija este homem na
boca, como me prometeste.” O rei beijou-o na boca e os rumores
acalmaram-se.
O senescal foi então introduzido; apresentou ao rei a cabeça do
dragão e ofereceu-se para provar em batalha o fundamento da sua
pretensão à recompensa prometida. Então Tristão ergueu-se contra ele
e disse em voz alta: “Olha, traidor, esta língua: quando matei o dragão,
cortei-a à cabeça que exibes!” Em seguida, voltou- se para os barões
reunidos: “Senhores, se não me acreditais, pegai nessa cabeça e
espreitai-lhe a garganta; a língua já aí se não encontra. Depois disto, se
este homem não quiser confessar que mente, que pegue nas armas e se
prepare para combater contra mim! Fornecer-lhe-ei a prova da sua
mentira.” O rei mandou que lhe trouxessem a cabeça do monstro, e
todos viram que a língua lhe havia sido arrancada. Ao ver isto, o
senescal perturbou-se; perdeu o sangue frio e cobriu-se de embaraço
enquanto o apupavam em toda a sala. De cabeça baixa, confessou a
sua perfídia; nesse mesmo instante, o rei retirou-lhe o cargo e
expulsou-o para sempre da corte.
Quando se fez de novo silêncio, Tristão tomou a palavra diante de
todos: “Senhores irlandeses, é verdade que matei o Morholt em combate
leal: ele ter-me-ia podido matar, mas a sorte das armas foi-me favorável.
Não tenho, pois, razão para me desculpar perante vós. Mas atravessei o
mar para vos oferecer uma bela compensação: pus o meu corpo em
perigo de morte e libertei-vos do monstro que devastava as vossas terras
e cidades. Eis que conquistei Isolda, a bela, e que a vou receber como
recompensa das mãos do rei seu pai. Tendo-a conquistado, levá-la-ei na
minha nau. Mas ficai sabendo, senhores irlandeses, que não serei eu
quem a desposará e que a filha do rei Gormond nunca será a mulher
daquele que venceu e matou o seu tio, o Morholt. De modo algum
porque faça pouco caso de uma tão grande honra, a de me tornar o
genro do rei Gormond! Se não aceito Isolda, a loura, como mulher, o
que poderia fazer como vencedor do dragão, é porque reconheci nela a
bela dos cabelos de ouro, de quem uma andorinha levou um cabelo até
ao castelo do rei Marcos, em Tintagel, e que o meu senhor decidiu
desposar. Tomei o caminho do mar unicamente para procurar a bela
dos cabelos de ouro e jurei, se a encontrasse, levá-la ao rei Marcos, que
não quer outra mulher. Tenho, pois, de cumprir o meu juramento,
senhores irlandeses, e não faltarei de modo nenhum. A fim de pelas
terras da Irlanda e da Cornualha se espalhar já não o ódio, mas a
amizade, Isolda reinará sobre as mais ricas terras de Inglaterra com o
rei seu marido; não existe no mundo melhor país nem homem mais
cortês. Vedes aqui cem vassalos de alta linhagem prontos a jurar sobre
as relíquias dos santos que a mensagem do rei Marcos é de paz e
amizade, que o seu desejo é honrar Isolda como sua mulher e que todos
os homens da Cornualha servi-la-ão como a sua senhora e rainha.”
Trouxeram com grande alegria as relíquias dos santos em
relicários de ourivesaria. Os cem homens da Cornualha juraram, a mão
erguida sobre os santos corpos, que o rei Marcos desposaria Isolda, a
loura, em legitimo casamento e que eles ficavam todos por fiadores em
seu nome. O rei Gormond pegou na filha pela mão e perguntou a
Tristão se este a conduziria lealmente até ao rei Marcos. Perante os
seus cem guerreiros e perante os barões da Irlanda, Tristão jurou-o.
Ora, tal é o humor inconstante das mulheres: a jovem Isolda,
cujos olhos irradiavam a mais viva alegria quando o senescal deixava a
sala sob as injúrias dos assistentes, mostrava agora um rosto
entristecido e de traços endurecidos pela cólera. O seu coração fremia
de vergonha e de angústia, pois que Tristão mal a havia libertado do
senescal covarde logo menosprezava casar-se com ela para levá-la na
sua nau, a fim de entregá-la a um velho rei do qual nada sabia. Por
certo que o belo conto do cabelo de ouro não passava de uma mentira
inventada a contento para justificar o seu desprezo. Mas o rei Gormond,
sem se deixar afastar do seu desígnio pelo furor da filha, pousou
solenemente a mão direita da moça na mão direita de Tristão, e este a
segurou em sinal de que se assenhoreava dela em nome do rei Marcos:
“Velarei sem cessar por ela, até ao dia em que a tiver entregue, como fiel
depositário, ao seu real marido.” Desde então, Isolda passou a ser
considerada por todos como a mulher do rei Marcos e começou a usar o
véu, que era o sinal das mulheres casadas.
Durante a semana seguinte, a rainha da Irlanda, ajudada pela fiel
Brangia, preparou o enxoval da filha em vista à grande viagem nupcial
que a deveria separar dela para sempre. Decidiu que a jovem Isolda
seria acompanhada por Brangia e por Périnis, o lacaio afeiçoado à sua
pessoa. Isolda não participava nos preparativos da viagem e da longa
travessia: triste e silenciosa, recusava qualquer conversa com Tristão,
por quem se julgava ofendida e desprezada. Vendo o humor sombrio da
filha, a rainha temia que ela fosse infeliz no castelo de Tintagel com um
marido que só aceitara constrangida e forçada pela vontade do pai.
Veio- lhe então à idéia recorrer à magia para assegurar a união dos dois
futuros esposos. Preparou uma poção poderosa com ervas e flores que
ela própria colheu na floresta e nas montanhas, a certas horas
propícias do dia e da noite; misturando-as com vinho, obteve unia
tintura ervosa, que era um filtro de amor capaz de fazer nascer a paixão
no homem e na mulher que o bebessem. Mas empregou tais ritos e tais
fórmulas secretas que conferiu a esse vinho ervoso um poder inaudito:
aquele e aquela que partilhassem essa poção deveriam amar-se com
todas as suas forças durante um período de três anos, a tal ponto que
não poderiam suportar estar afastados um do outro mais de um dia
sem sofrer gravemente e mais de uma semana sem se arriscarem a
morrer. Depois, entregou a Brangia o frasco, cuidadosamente selado
com cera, que continha o filtro do amor: “Quero que acompanhes a
minha filha Isolda à Cornualha, tu, a quem eduquei com ela e que a
serviste fielmente durante toda a sua infância: ficarás junto dela no
castelo do rei Marcos, em Tintagel, e continuarás a servi-la enquanto
viver. E como prova da minha estima por ti, Brangia, vou confiar-te um
segredo e unia missão: toma este frasco de vinho ervoso e conserva-o
escondido num cofre sem conhecimento de Isolda... É uma poção de
amor que eu própria compus para a felicidade de minha filha e do seu
futuro marido: pega nele e não fales disso a ninguém. Na noite de
núpcias, quando os dois esposos tiverem entrado no leito nupcial, iras
ao quarto e apresentarás a cada um uma taça deste vinho ervoso para
que o bebam ao mesmo tempo e de uni só trago. E vela bem para que
ninguém beba deste filtro, pois grandes males daí poderiam advir!”
Brangia respondeu: “Senhora, será feito como ordenais.”
Tristão pedira ao rei Gormond uma nau irlandesa para escoltar a
sua até Tintagel: foi nessa nau que Isolda tomou lugar com as suas
servas, e uma vasta tenda foi erguida para elas na ponte do navio.
Entre os homens, só Tristão aí tinha acesso. Quando a nau ficou
pronta, todos se dirigiram para o porto, o rei e a rainha acompanharam
a filha até lá e, quando o vento se levantou os dois navios singraram
juntos para o alto mar. Na margem, muitos homens e mulheres,
nascidos no mesmo país de Isolda, choravam ao vê-la afastar-se, pois
amavam-na pela sua graça e beleza.
IX
CUMPRE-SE O SORTILEGIO
JÁ AS NAUS, fendendo as vagas espumosas, singravam o alto
mar. Isolda, sentada longe no pavilhão das mulheres, via a costa da
Irlanda apagar-se na bruma. Suspiros enchiam o seu peito e as
lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto. Lamentava-se por deixar o país
natal, os parentes e amigos, para vogar com homens desconhecidos,
sem saber qual o destino. Tristão consolava-a, tão docemente quanto
podia, cada vez que a encontrava a moer a sua dor. Fazia-o com o
respeito que o vassalo deve à sua senhora, pois, por mais
impressionado que estivesse com a sua beleza, não tinha outro querer,
o fiel, que de lhe ser um reconforto na dor. Isolda respondia-lhe com
despeito: “Deixai-me! Afastai-vos! Que importuno sois!” “Por que vos sou
importuno?” “Porque vos odeio.” “Bela, por qual delito?” “Porque, sem
vós, estaria ainda livre de cuidados e dores. Fostes vós que, com astúcia
e engano, me pusestes nesta aflição. Que funesto destino vos enviou,
para minha infelicidade, da Cornualha à Irlanda? Para onde me levais?
Não sei.”
“Sossegai, bela Isolda, pois vivereis em grande alegria, rainha
poderosa numa terra rica! Em breve vos darei por senhor um rei em
quem encontrareis cada dia alegria e saber viver, bem, virtude, honra.”
“Não sei, em verdade, por que me fazeis todos esses elogios ao rei
Marcos, vosso tio. Pouco me importa que sejam verídicos ou inventados
a contento. Uma única coisa conta a meus olhos: o desprezo que
mostrais por mim.” “Qual desprezo?” - interrogou Tristão. “Por que me
perguntais o que sabeis perfeitamente? O meu pai estava pronto a darme
a vós em recompensa, desprezaste-me e, tornando como pretexto a
fábula do cabelo de ouro, pedistes a minha mão não para vós, mas para
o vosso tio.” Tristão não soube o que responder, pois parecia-lhe
supérfluo e irritante repetir novamente com minúcia a história das
andorinhas, do cabelo de ouro e do juramento solene feito a Marcos.
Entretanto as duas naus corriam pelo mar; até então o vento fora
favorável e a travessia boa. Todavia Isolda e as mulheres do seu séquito
não estavam habituadas às fadigas dos ventos e das vagas e em breve
sentiram um mal-estar nunca experimentado. Na véspera de São João,
os ventos caíram; num céu sem nuvens, o sol, com todo o seu brilho,
fazia cintilar as vagas. Um pesado calor oprimia os homens: Tristão
mandou aportar numa ilha e, cansados do mar, os homens e as
mulheres desceram a terra para se recrearem nas sombras. Isolda
preferiu ficar no pavilhão, unicamente em companhia de Brangia: mais
ninguém ficou no navio irlandês. Foi então que a ardilosa criada, vendo
a rainha fechar- se selvaticamente na sua tristeza e despeito, esforçouse
em acalmá-la com palavras astuciosas: “Por que consumir as horas e
os dias num sombrio desgosto? Por que temer e maldizer
antecipadamente a vossa união com o rei Marcos? Nada podeis fazer,
uma vez que vosso pai soberanamente o decidiu: convém-vos agora tirar
o melhor partido dessa necessidade e conformai-vos.” Isolda pareceu
irritada com estas palavras e replicou, não sem vivacidade: “De que
serve pregares-me tolamente resignação quando não tens nenhum meio
para acalmar a minha inquietação? Cessa de me afligires com vãs
palavras!” “Seja - continuou Brangia - renuncio a aconselhar-vos, mas
deixai-me desvendar-vos um segredo que deverá trazer a calma à vossa
alma. A rainha vossa mãe fez-me prometer que não o revelaria a
ninguém, nem mesmo a vós, mas o estado de desolação em que vos vejo
força-me a dele vos dar parte. Não acho outro meio de suavizar o vosso
sofrimento. A rainha, antes da nossa partida, confiou aos meus
cuidados uma bebida ervosa que preparou com toda a sua ciência da
magia: é um filtro de amor que servirei ao rei Marcos e a vós após terdes
entrado no leito nupcial. Bebê-lo-eis os dois ao mesmo tempo e, mal o
tiverdes feito, amar-vos-eis com todas as forças e com toda a alma, num
amor imperioso e sem falha. Durante três anos, nem sequer vos
podereis separar mais de um dia sem sofrer, nem mais de uma semana
sem risco de morrerdes. Tal é a força inaudita desse sortilégio que o
desgosto de amor será por ele banido do vosso coração e vivereis
doravante, no reino da Cornualha, feliz e cumulada de todos os bens.
Renunciai pois a torturar-vos, já que a vossa felicidade está assegurada
antecipadamente pela força do vinho ervoso.” Esta brusca revelação
mergulhou Isolda em tal estupor que ficou muito tempo sem falar,
absorta nos seus pensamentos, mas redargüiu finalmente, com a
mesma vivacidade de tom: “Iludes-te muito se pensas que vou beber
esse vinho ervoso cuja existência acabas de me dar a conhecer e
partilhá-lo com o rei Marcos na noite de núpcias. Podes apresentar-nolo,
como a minha mãe te ordenou; pela minha parte, não lhe prometi
nada nem ela me pediu alguma coisa. Não sou, portanto, obrigada a
beber esse licor mágico e não o beberei. Se o partilhasse com o rei
Marcos, far-me-ia cúmplice das manobras tortuosas de Tristão. Não,
não farei o seu jogo, não me curvarei às suas vontades! O Rei Marcos
beberá esse vinho ervoso sem desconfiança alguma quando lho
ofereceres, mas eu previno-te: embora aproxime a taça da boca, não
beberei nem uma gota. O sortilégio não terá efeito algum sobre mim.”
Brangia replicou: “Dizei-me, Isolda: se Tristão vos tivesse pedido para si
a vosso pai e se vos tivesse obtido, teríeis aceitado beber o filtro do amor
que vossa mãe me teria sem dúvida igualmente confiado para a noite de
núpcias? É uma coisa que desejo saber: não mo escondais!” Isolda
vacilou um longo momento, depois disse: “Não te posso responder nem
sim nem não. Cansas-me com as tuas perguntas. Deixa-me em paz!” A
criada afastou-se então, mas ficou a saber que a aparente aversão de
Isolda por Tristão procedia, sem que ela disso tivesse consciência, de
um desejo amoroso inconfessado e desenganado.
Pouco depois, vendo que Isolda ficara no navio e se recusava a
tomar parte nos divertimentos na ilha, Tristão dirigiu-se ao pavilhão
para saudá-la e visitá-la. Quando, sentados lado a lado, trocavam
algumas palavras, ambos sentiram sede e disseram-no um ao outro.
Isolda chamou Brangia e ordenou-lhe que trouxesse vinho. Esta
apressou-se a alcançar o ângulo do pavilhão onde os marinheiros
irlandeses haviam colocado as arcas de Isolda e do seu séquito. De uma
delas retirou o precioso frasco, reconhecível entre todos, onde a rainha
da Irlanda deitara o vinho ervoso. Nesse instante, o rosto da jovem
iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as mãos o meio mais
seguro de fazer nascer o amor em Tristão e de ligá-lo para sempre a
Isolda. Brangia colocou o frasco com uma taça de prata cinzelada numa
mesa à qual Isolda se encostara e disse-lhe com um ar risonho: “Rainha
Isolda, tomai esta bebida que foi preparada na Irlanda para o rei
Marcos.” Isolda não respondeu nem interferiu com a criada. Quanto a
Tristão, esse julgou tratar-se de um vinho de eleição oferecido ao rei
Marcos. Como homem cortês e bem-educado, deitou a poção na taça e
estendeu-a a Isolda, que bebeu até se fartar. Quando ela pousou a taça
ainda meio cheia, Tristão pegou nela e esvaziou-a até a última gota.
Mal os dois jovens beberam desse vinho, o amor, tormento do
mundo, penetrou nos seus corações. Antes de se terem apercebido
disso, curvou-os a ambos ao seu jugo. O rancor de Isolda dissipou- se e
nunca mais foram inimigos. Já se sentiam ligados uni ao outro pela
força do desejo e, no entanto, ainda o escondiam um do outro. Por mais
violenta que fosse a atração que os empurrava para o mesmo querer,
ambos tremiam igualmente no temor da primeira confissão.
Quando Tristão sentiu o amor apossar-se do seu coração,
recordou- se imediatamente do juramento feito ao rei Marcos, seu tio e
seu suserano, e quis recuar: “Não - dizia consigo mesmo sem cessar -,
deixa isso, Tristão, volta a ti, não acolhas em ti um desígnio tão
desleal.” Também ponderava: “Audret, Denoalen, Guenelon e Gondoïne,
traidores que me acusáveis de cobiçar a terra do rei Marcos, ah!, ainda
sou mais vil e não é a sua terra que cobiço. Bom tio, que me recolhestes
órfão antes mesmo de reconhecer o sangue de vossa irmã, vós que me
choráveis enquanto Gorvenal me levava para o barco sem remos nem
vela, por que não expulsastes, logo no primeiro dia, a criança errante
vinda para vos trair?” Mas o coração trazia-o sem descanso ao mesmo
pensamento de amor. Por vezes, juntava a coragem como faz um
prisioneiro procurando evadir-se, e repetia consigo mesmo: “Muda o teu
desejo, ama e pensa noutra!” Mas o laço cada vez se apertava mais.
Quanto a Isolda, todo o seu pensamento não era mais que o amor de
Tristão. Até ao anoitecer, durante longas horas, procuraram-se às
apalpadelas como cegos, infelizes quando se mantinham silenciosos e
enlanguesciam separados, mais infelizes ainda quando, reunidos,
recuavam ante a embriaguez do primeiro beijo.
Isolda falou em primeiro lugar e de maneira bem feminina - foi
por meio de longos desvios que se aproximou pouco a pouco do seu
amado: “Ah!, quando se apresentou a ocasião tão propícia de vos ferir
no banho, quando deixei cair a espada já brandida, meu Deus!, que fiz
eu? Se tivesse sabido então o que sei hoje, palavra de honra que vos
teria morto!” “Por que, bela Isolda” Que vos atormenta?” “Tudo o que sei
me atormenta; tudo o que vejo me faz mal; o céu e o mar atormentamme
e o meu corpo e a minha vida.” Inclinou-se e apoiou o braço nele -
foi esta a sua primeira ousadia. Os seus olhos claros como espelhos
embaciaram- se com lágrimas furtivas, o seu peito encheu-se, os seus
doces lábios fremiram, inclinou a cabeça. Ele disse-lhe em voz baixa:
“Isolda, só vós e o amor me perturbaram e me fizeram perder o senso.
Deixei a estrada e eis-me de tal modo perdido que jamais a voltarei a
encontrar. Tudo o que os meus olhos vêem parece-me sem preço. Em
todo o mundo, nada é querido ao meu coração excetuando vós.” Isolda
respondeu: “Senhor, tal sois vós para mim.” Nos seus belos corpos
vibravam a juventude e a vida. Quando fogos de alegria se acendiam na
ilha e os marinheiros dançavam cantando à volta das chamas
avermelhadas, os dois enfeitiçados, renunciando a lutar contra o desejo,
abandonaram-se ao amor.
Brangia, após ter servido o vinho a Isolda, tinha-se juntado às
outras aias da rainha na ilha, mas o seu pensamento estava longe.
Quando voltou para a nau irlandesa, viu num banco, à claridade das
estrelas, o frasco de vinho que Isolda aí deixara. Pegando então no
frasco, vazio até mais de metade, correu a escondê-lo de novo na arca
de onde o tirara. Foi então que distinguiu, na penumbra, Isolda
estendida num leito nos braços de Tristão. Fingiu então a mais
profunda surpresa e soltou um grande grito, como se não tivesse
previsto nem desejado o que estava a acontecer. Para melhor iludir
Tristão, lamentou-se em voz tão alta e dolente que o mais insensível
teria ficado impressionado: “Infelizes, parai e voltai atrás, se ainda o
podeis! Mas não, vejo-o bem, por meu fatal equívoco, a força do amor
arrasta-vos! É o vinho ervoso que vos possui, a poção que a rainha da
Irlanda me confiara quando da nossa partida. Só o rei Marcos e Isolda
deveriam bebê-lo na noite de núpcias. O Diabo serviu-se de mim e foi a
vós que deitei esse filtro mágico quando me pedistes com que matar a
sede. Por minha culpa, bebestes, um e outro, do cálice de prata, a
embriaguez e os tormentos do amor.” Mas os amantes, completamente
absorvidos pelas carícias mútuas, não lhe respondiam.
Entrementes, Gorvenal, que tomara parte nos regozijos dos
marinheiros, voltara para o navio irlandês, onde sabia que Tristão fazia
companhia a Isolda. Estava diante do pavilhão das mulheres no
momento em que Brangia confessava aos amantes o seu pretenso
equívoco. Assim, o fiel escudeiro de Tristão foi o único, juntamente com
Brangia, a conhecer desde essa noite o segredo da bebida ervosa e o
amor que esta fizera nascer entre Tristão e a filha do rei da Irlanda.
Ninguém entre os marinheiros dos dois navios soube disso e nenhuma
das mulheres irlandesas que acompanhavam Isolda teve a menor
suspeita.
X
A NOITE DE NÚPCIAS DO REI MARCOS
No DIA seguinte ao São João, os dois navios fizeram-se à vela e
vogaram novamente para a Cornualha. Os amantes não tinham
nenhuma dificuldade em se encontrarem de dia ou de noite, mas à sua
alegria misturava-se a inquietação, pois temiam que o seu segredo fosse
surpreendido. Se o rei Marcos viesse a descobrir a sua falta, não
deixaria de infligir-lhes um castigo inexorável. “Quando o rei se
aperceber de que já não sou virgem - dizia Isolda -, sofrerei a pena que
as leis dos nossos povos reservam à mulher adúltera e que é a mesma
de um traidor: serei queimada viva e as minhas cinzas dispersas aos
quatro ventos.” Tristão respondia-lhe: “E quando o rei Marcos se
aperceber disso, considerar-me-á seguramente o único culpado
possível, uma vez que, ao receber-vos das mãos de vosso pai, tomei o
compromisso de velar durante toda a viagem pela segurança da vossa
pessoa e a integridade do vosso corpo! Posso, pois, bela amiga, temer
tanto quanto vós a cólera de meu tio e, se tiverdes de perecer de funesta
morte, pereceremos juntos.”
No momento em que o seu coração era agitado por todos estes
temores e por mil pensamentos contraditórios, Isolda lembrou-se de um
ardil para esconder a sua falta. Teve a idéia de pedir a Brangia, que
ainda era virgem, para tomar em segredo e em silêncio o seu lugar no
leito do rei na noite de núpcias. Os amantes suplicaram-no a Brangia
com tanta insistência que esta acabou por vencer a repugnância:
resignou-se a executar o seu desejo. Isolda prometeu-lhe em troca belas
recompensas e que viveria para sempre ao pé dela em grande honra.
Brangia acrescentou: “É justo que vos obedeça e me submeta à vossa
vontade, pois sou eu a causa da vossa falta e responsável pela morte
que vos ameaça se a vossa ligação for descoberta. Disponde, pois, de
mim como quiserdes.”
De repente, soaram os gritos dos marinheiros: “Terra! Terra!” No
horizonte, era visível a costa da Cornualha, e todos estavam felizes por
chegar ao termo da viagem, salvo Isolda, que cada vez receava mais
encontrar-se frente ao rei Marcos, e Tristão, pois, se fosse senhor do
seu destino, vogaria sem fim pelas vagas com aquela que era doravante
o seu encanto e alegria.
Quando os dois navios entraram no porto de Tintagel, Tristão
enviou logo um mensageiro ao castelo do rei Marcos para anunciar- lhe
que o sobrinho obtivera para ele a mão de Isolda, a loura, a bela dos
cabelos de ouro, e que lha trazia. O rei alegrou-se muito com esta nova
e veio, à frente de um brilhante cortejo, acolher a esposa ao porto.
Tristão pegou-lhe na mão e levou-a diante do rei, que, a recebeu por
sua vez, dizendo: “Bela, aceito- vos neste momento por minha mulher e
companheira, como Tristão, meu sobrinho e mensageiro, vos recebeu
em meu nome das mãos de vosso pai.” Quando foi introduzida no salão
do palácio, no meio de todos os vassalos, Marcos tomou a palavra:
louvou as andorinhas que, num maravilhoso presságio, lhe haviam
trazido o cabelo de ouro, louvou Tristão e os cem vassalos que, pelo mar
aventuroso, tinham partido em busca da alegria dos seus olhos e do seu
coração.
Alguns dias depois, em presença do clero e de todos os barões,
celebrou os esponsais com a jovem Isolda. Quando chegou a noite, a
noiva deixou a sala do festim em companhia de Brangia, a sua criada, e
dirigiram-se, seguidas por Tristão, ao quarto do rei. Aí, Brangia, para
cumprir a promessa, entrou, despida, no leito, no lugar de Isolda, e
aguardou pacientemente a vinda do rei, enquanto Isolda se retirava.
Então, Tristão voltou para a sala do festim, onde encontrou Marcos
muito alegre e algo perturbado pelos vapores do vinho. Tendo-o
conduzido até à entrada do quarto real, disse ao rei que era costume ria
Irlanda apagar todas as luzes no momento em que o marido se juntava
à mulher no leito nupcial. “Esse costume é bom e belo - respondeu
Marcos -, faça-se assim!”
Tristão apressou-se a apagar todos os candelabros e acompanhou
o rei até ao leito onde Brangia já repousava. Era da mesma idade e do
mesmo tamanho de Isolda. O rei estendeu-se ao lado de Brangia,
tomou-a nos braços, apertou-a, nua, contra o peito e amou-a.
Entretanto, Isolda esperava na sombra, à escuta, ansiosa e
temerosa de que o ardil fosse descoberto. Ao fim de uma hora, ou pouco
mais, o rei, aturdido pela bebida, adormeceu profundamente. Então,
Brangia deslizou sorrateiramente para fora da cama e Isolda tomou o
seu lugar com precaução, para não incomodar o sono do rei. Quando
ele acordou, pelo meio da noite, perguntou se não serviam aos novos
esposos uma taça de vinho para reconfortá-los, como era costume nesse
tempo. Brangia, que previra este pedido, apressou-se a trazer uma taça
onde havia deitado o que restava do vinho ervoso no frasco que a rainha
da Irlanda lhe confiara. Marcos, sentado no leito, recebeu a taça das
mãos de Brangia, bebeu metade e depois passou-a a Isolda para que
esta, por sua vez, o bebesse; mas ela, sem ser vista pelo marido, deitou
fora a bebida que restava na taça. Desta vez, nem uma gota aflorou os
seus lábios.
Quando Brangia se retirou, apagando as luzes de novo,
imediatamente o filtro operou no rei. Um novo ardor aqueceu-lhe o
coração, um arrepio percorreu-lhe os membros. Estendeu os braços
para a Isolda e enlaçou-a. O rei não se apercebeu de que, perto do
alvorecer, abraçava outra companheira que não era a que tivera nos
braços nas primeiras horas da noite. Isolda, por seu lado, mostrou-se
dócil ao prazer do rei Como tinha jeito para fingir, respondeu às suas
carícias; ele próprio prodigalizou-lhe tanta ternura que a rainha sentiuse
satisfeita. Distraíram-se com vários ditos agradáveis e divertidos; a
noite acabou em alegria.
Em seguida, Isolda mostrou-se animada e feliz; o rei amava-a;
ricos e pobres louvavam-na e honravam-na. Tantas vezes quanto podia,
via em segredo Tristão, mas como estava constantemente colocada sob
a sua guarda, ninguém, nos primeiros tempos do seu casamento,
concebeu a mais ligeira dúvida.
XI
BRANGIA ENTREGUE AOS SERVOS
ISOLDA é rainha e parece viver em alegria tem a ternura do rei
Marcos, os barões honram-na e o povo acarinha-a. Passa o dia no
quarto das mulheres, ricamente pintado e juncado de tiores; tem jóias
preciosas, tecidos de púrpura e tapetes vindos da Tessália. E, acima de
tudo, Isolda tem os seus ardentes e belos amores e Tristão ao pé de si
quando quer, de dia e de noite, pois, como exigia o costume dos
senhores daquele tempo, ele dorme no quarto do rei, entre os íntimos e
os fiéis. Vários meses decorreram sem que ninguém desconfiasse dos
amores da rainha: só Brangia e Gorvenal conheciam o segredo. Tristão
sabia que podia contar com a discrição sem falha do seu fiel escudeiro.
Isolda estava menos segura do silencio de Brangia: acontecia-lhe temer
que no decorrer de uma zanga a criada deixasse escapar palavras
imprudentes e despertasse suspeitas ao rei Marcos ou ao seu séquito.
Brangia sabia o seu segredo, Brangia tinha-a à sua mercê. Assim, o
medo enlouquece a rainha, e eis que uma idéia monstruosa germina no
seu espírito, aí se instala e não mais a deixa: “Que Brangia desapareça
e nada mais terei a temer!”
Um dia em que o rei Marcos e Tristão caçavam longe, Isolda
mandou chamar dois servos florestais do rei. Prometeu, se a servissem
docilmente, libertá-los e dar-lhes tal peso de ouro que poderiam viver
daí em diante sem preocupações. Tentados, declararam-se prontos a
fazer o que a rainha ordenasse. “Eis o que espero de vós disse-lhes ela -
Tenho aqui uma criada que cometeu uma falta e merece castigo. Levai-a
para a floresta e trespassai-a com os vossos punhais, depois disso,
cortai-lhe a língua e trazei- ma em sinal certo da sua morte. Podeis
estar seguros da minha generosidade; recebereis, além da liberdade,
pelo menos sessenta soldos de ouro.” Tal é o medo de Isolda de perder o
seu amor que se torna cruel e sem piedade. Em seguida, finge estar
doente e ordena a Brangia que vá procurar, para aliviar-lhe o mal, ervas
salutares à floresta; dá-lhe os dois servos para a guiarem e protegerem
de qualquer perigo.
Brangia foi, portanto, com os servos, e caminharam tanto que
chegaram às profundezas do bosque. Um deles avançava à sua frente, o
outro a seguia. Subitamente, aquele que ia à frente brandiu o punhal
para atingi-la. Brangia, não podendo avançar nem recuar, começou a
tremer. Gritou tão alto quanto pôde, juntou as mãos e conjurou o servo
a dizer-lhe por que crime, por qual delito ia ser morta. O servo
respondeu: “Em verdade ignoro-o, e a ti compete dizer-mo. Mal mo
digas, mato-te. Que fizeste, pois, à rainha Isolda para que ela te tenha
destinado tal morte?” Brangia respondeu: “Em nome de Deus, deixaime
confiar-vos uma coisa antes da minha morte, pois quero mandar
uma mensagem à rainha Isolda. Depois de me massacrarem, suplicovos,
declarai-lhe que nunca cometi nenhuma má ação em relação a ela,
exceto uma única: quando partimos da Irlanda, a rainha sua mãe deunos
a cada uma, para a nossa noite de núpcias, uma camisa, branca
como a neve. Isolda usou a sua desde o dia da partida. Eu, que não
passava de uma pobre rapariga, comprada ainda criança a piratas
noruegueses, conservei a minha o melhor que pude. Isolda, por causa
do grande calor, só trazia sobre a camisa uma túnica, de sorte que a
rasgou inadvertidamente. No momento de desembarcar em Tintagel
para casar com o rei Marcos, suplicou-me que lhe emprestasse a minha
camisa para entrar no leito do rei, pois a sua já não estava tão branca
nem tão intacta como convinha. Confesso que me custou aceder ao seu
pedido, pois, por mais pobre que seja, gostaria de conservá-la para mim
própria. É por isso que, antes de ceder, me fiz suplicar: essa breve
hesitação é a única coisa que Isolda me pode censurar. Em minha alma
e consciência sei que não cometi mais nenhuma falta contra ela.
Saudai-a, pois, em nome de Deus e no meu, e dizei-lhe que lhe
agradeço todo o bem e toda a honra que me fez desde a minha infância
até este dia. Que Deus, na sua bondade, a guarde, proteja o seu corpo e
a sua vida e que a minha morte lhe seja perdoada. Recomendo a minha
alma a Deus. Quanto ao meu corpo, está à tua discrição: podes matarme
agora!”
Os dois homens olharam um para o outro, comovidos com as
lágrimas que corriam dos olhos da criada. Ambos estavam com
remorsos e maldiziam o terem prometido cometer esse assassínio. Não
podendo descobrir nada nela que parecesse merecer a morte,
deliberaram e concordaram em que era necessário deixar-lhe a vida.
Ataram, pois, a fiel Brangia a uma árvore, bastante acima do solo, para
impedir que os lobos a alcançassem e devorassem; na sua compaixão e
retidão, esperavam poder voltar mais tarde para libertarem-na. Então,
encontraram nas moitas uma lebre que caíra numa armadilha;
mataram-na e cortaram-lhe a língua para a levarem à rainha.
Quando Isolda os viu de volta, perguntou-lhes imediatamente
com ansiedade: “Falou antes de morrer?” “Sim, rainha, falou. Disse que
estáveis irritada contra ela pela única ofensa que vos fez. Rasgasteis no
mar uma camisa branca como neve que trouxestes da Irlanda, e ela
hesitou em emprestar-vos a sua para a vossa noite de núpcias. Foi este,
dizia ela, o seu único crime.” “Não falou mais?” “Não, rainha,
agradeceu-vos todos os bens recebidos de vós desde a infância, pediu a
Deus que protegesse o vosso corpo e a vossa vida. Manda-vos
saudações e amor. Rainha, eis a sua língua, que vos trazemos.” Isolda
entrou então em violenta cólera: “Assassinos, quem vos disse para a
matardes? Devolvei-me Brangia, a minha querida serva! Não sabíeis que
era a minha única amiga?” “Rainha - respondeu um dos servos - diz-se
justamente que a mulher muda em pouco tempo. Matamo-la porque vós
no-lo ordenastes.” “Miseráveis! Não vistes que falava sob o efeito da
cólera? Não devíeis refletir longamente e adiar para mais tarde? Ai de
mim!, era a minha querida companheira, a doce, a fiel, a bela. Quero
vingar em vós a sua morte. Mandarei esquartejar-vos pelos cavalos e
queimar os vossos membros numa pira se não ma devolveis sã e salva e
tal como vo-la confiei!” Um dos servos respondeu: “Palavra de honra,
rainha, mudais facilmente de pensamento! Nem há duas horas,
ordenáveis-nos que a matássemos, e agora quereis perder-nos por amor
dela! Para dizer a verdade, senhora, a vossa serva ainda está viva, pois
não tivemos coragem de assassinar essa inocente com medo de incorrer
nos castigos de Deus! Com a vossa permissão, devolvê-la-emos em
breve, sã e salva.” A rainha permitiu que um dos servos fosse buscar
Brangia à floresta e mandou guardar o outro, a fim de se vingar nele se
o companheiro não lhe trouxesse a moça.
Quando Brangia reapareceu no palácio com o florestal que
acabava de desamarrá-la da árvore, ajoelhou-se aos pés da rainha,
pedindo- lhe que perdoasse os seus erros; mas esta também caíra de
joelhos diante dela e ambas ficaram longamente abraçadas. Nunca
mais, desde esse instante, a rainha Isolda concebeu a menor dúvida
sobre a fidelidade da sua querida Brangia.
XII
A INVEJA DE KARIADO
TRISTÃO amava Isolda com um amor imutável; ela, igualmente.
Levavam a vida do mesmo modo, cortês e agradável, e o seu amor era
de tal força que pareciam só ter um coração e uma alma. Vários na
corte o notaram e o caso foi falado; mas ninguém sabia as coisas com
toda a certeza, e o que se contava eram unicamente boatos.
Tristão tinha por companheiro e par um vassalo de nobre família
chamado Kariado, que era da sua idade e com o qual partilhava várias
vezes o quarto no interior do castelo de Tintagel. Era um fiel do rei
Marcos, sempre atento a agradar-lhe, mas invejava os favores com que
ele cumulava o sobrinho. Ora, uma noite em que repousavam juntos na
mesma cama, mal Kariado adormeceu, Tristão esgueirou-se de perto
dele e saiu. Caíra neve e a Lua brilhava com tanta claridade que dir-seia
ser dia. Tristão chegou à vedação do pomar que se encontrava sob o
quarto das mulheres: afastou uma prancha da paliçada por onde
costumava penetrar. Brangia pegou-lhe na mão e conduziu-o à rainha
Isolda. De um cesto para recolher as cinzas fez um resguardo para
disfarçar a claridade da vela e dissimular os ardores dos amantes.
Depois, foi-se deitar, esquecendo-se de fechar a porta do quarto.
Entretanto Kariado teve um sonho: viu um enorme javali
arremessar- se da floresta, de boca aberta; aguçava as defesas e
agitava-se tão violentamente que parecia querer devastar tudo. O
animal avançou para o castelo. Nenhum dos barões de Marcos ousou
enfrentá-lo. O javali correu a grunhir pelo palácio até ao quarto do rei.
Atravessou as portas, precipitou-se no aposento, rasgou e sujou com a
espuma do focinho o leito de Marcos e os seus ornamentos. Vários
homens acorreram então em socorro, mas o próprio rei não ousava
fazer nada.
Kariado acordou, angustiado com o que vira, e acreditou em
princípio ser verdade. Mas logo reconhecendo que não passava de um
sonho, ficou curioso de saber o que poderia significar. Chamou Tristão,
seu companheiro, para dele lhe dar parte. Tateia a cama e não o
encontra. Levanta-se, vai à porta e apercebe-se de que está aberta.
Supõe que Tristão saiu nessa noite para divertir-se algures; mas por
que se terá afastado tão misteriosamente, sem que pudessem notar a
sua partida, sem que tivesse confiado a alguém aonde queria ir?
Kariado avista as suas pegadas na neve e segue facilmente essa
pista, pois havia luar. Tendo chegado ao pomar, vê a abertura na
paliçada por onde Tristão se introduzira. Chega à porta do quarto das
mulheres e encontra-a aberta. Vem-lhe ao espírito que Tristão aí entrou
por amor de alguma criada; mas no próprio momento em que tem este
pensamento, um outro se apodera dele: Tristão entrou aí por amor da
rainha. Por fim, Kariado entra no quarto silenciosamente e não
encontra claridade alguma: a vela acesa só dá um fraco clarão, pois está
coberta com o cesto. Kariado avança mais, tateando as paredes com as
mãos, e tanto faz que chega perto do leito da rainha, entrevê os dois
amantes estendidos lado a lado e, de súbito, descobre todo o mistério.
Deixa o quarto e afasta-se, depois volta a deitar-se, preocupado. Em
breve Tristão regressa por sua vez e sobe cuidadosamente para a cama.
Conservou- se silencioso e o outro calou-se, nenhum disse uma
palavra, o que raras vezes lhes acontecera; não estavam acostumados a
tal desconfiança. Tristão apercebeu-se logo desse afastamento e
compreendeu que, intimamente, Kariado desconfiava de qualquer coisa.
Daí em diante vigiou melhor as suas ações e os seus ditos, mas tarde
demais - o seu segredo fora descoberto.
No dia seguinte, Kariado chamou o rei de parte e disse-lhe: “Sire,
contam-se na corte, a respeito de Tristão e de Isolda, muitas coisas que
não honrariam de modo algum o vosso país e os vossos homens.
Advirto-vos para terdes cuidado e refletirdes: estão em jogo o vosso
sossego e a vossa honra.” Marcos, o mais fiel dos homens e o melhor,
Marcos, o simples, espantou-se: recusava-se a obscurecer, fosse com a
mais ligeira dúvida, a estrela da sua alegria, Isolda. Todavia, trouxe
estas coisas no coração com sofrimento e dor e pôs-se daí em diante à
espreita para ver se conseguia descobrir algum indício. Espiava sem
cessar os atos e as palavras da rainha, mas sem nada surpreender, pois
Tristão havia posto Isolda de sobreaviso e advertira-a das suas
suspeitas e da inveja de Kariado.
Finalmente, o rei resolveu experimentar a rainha. Uma noite em
que repousava ao pé dela, disse-lhe com fingida tristeza: “Senhora,
quero fazer uma peregrinação, viajar fora da minha terra e, para minha
salvação, visitar os santos lugares. Mas não sei a quem entregar a
guarda do meu reino. Que me aconselhais? Dizei-me sob qual
salvaguarda quereis ficar e seguirei vosso conselho.” Isolda respondeu:
“Como podeis duvidar do melhor partido? Quem me deve proteger senão
o meu senhor Tristão? Parece- me que o mais conveniente é eu ficar
entregue à sua proteção. Pode defender a vossa terra e tomar conta da
vossa corte. É filho de vossa irmã; saberá esforçar-se por manter em
toda a parte a vossa honra, e, pelo seu fiel serviço, com satisfação de
todos, guardará bem o vosso reino.” O rei ficou perturbado com estas
palavras: de manhã, foi ter com Kariado e contou-lhe a conversa com a
rainha. Kariado respondeu-lhe: “Podeis reconhecê-lo agora pelas
palavras da rainha: ama Tristão com tal amor que já não consegue
dissimular. É estranho que queirais suportar durante tanto tempo tal
vergonha e que não expulseis Tristão para longe de vós.” Mas o rei
continuava hesitante e incerto, e não se decidia ainda a aceitar como
verdade o que Kariado lhe dizia do sobrinho.
Entretanto, Isolda levantou-se, chamou Brangia e disse-lhe: Bela
amiga, soube de uma boa e muito doce nova: o rei quer fazer uma
viagem fora do país. No intervalo, devo ficar sob a guarda de Tristão e
juntos teremos prazer e alegria: ofenda-se quem queira!” “Senhora -
perguntou Brangia - donde vos veio essa nova e quem vo-la disse?”
Isolda contou-lhe a conversa da noite com o rei. Imediatamente,
Brangia reconheceu a loucura da rainha e disse-lhe: “Não sabeis fingir!
O rei experimentou-vos e descobriu-vos, pois ignorais a arte de
dissimular os vossos secretos pensamentos. Foi Kariado quem tudo
maquinou com o rei para que vos traísseis: não é difícil de adivinhar,
observando bem, como ele está secretamente apaixonado por vós e tem
ciúmes de Tristão.” Brangia deu conselhos à rainha e ensinou-lhe o que
devia dizer ao rei para se livrar desse mau passo.
Por seu lado, a conselho de Kariado, o rei tentou experimentar
Isolda pela segunda vez. Na noite seguinte, apertou-a ternamente
contra o coração e deu-lhe beijos. “Bela amiga - disse - nada me é tão
profundamente caro como vós; e o pensamento de que nos vamos
separar, Deus que está no céu bem o sabe, rouba-me o senso.” Mas ela
viu logo que ele queria experimentá-la como já o fizera. Dissimulou por
sua vez e começou a suspirar profundamente: “Infeliz, nasci para o
sofrimento e a dor!” “Bela amiga - perguntou o rei - que tendes e por
que essas lágrimas?” Isolda respondeu: “Há muitas razões para os meus
cuidados, para os meus sofrimentos intoleráveis, se vós não os quereis
suavizar. Pensei que o que me dissestes a noite passada era uma
brincadeira e que afirmáveis, por simples gracejo, querer viajar fora do
país. Compreendo agora que faláveis a sério. Infeliz a mulher que ama
tão ardentemente um homem! Nenhuma mulher mais se deveria fiar
num homem se me quereis deixar e abandonar aqui. Onde me
deixareis? E qual dos vossos fiéis me protegerá? Por amor de vós, deixei
todos os meus sustentáculos: pai e mãe, parentes e amigos. Nunca
mais terei consolação, nem de dia nem de noite, se ficar privada do
vosso amor. Em nome de Deus, ficai ou deixai-me, cativa, ir convosco!”
O rei Marcos respondeu: “Não vos quero deixar sozinha, senhora, uma
vez que Tristão, meu sobrinho, vos deve proteger e servir com toda a
amizade e decoro. Não há ninguém no meu reino a quem ame tanto
como a ele, pela grande cortesia com que vos serve.” “Ai de mim -
exclamou Isolda -, se é ele que me deve proteger e guardar! Sei o que
pensar do seu zelo em me servir e dos seus bons sentimentos não
passam de hipocrisia e de falinhas mansas. Finge ser meu amigo
porque matou o meu tio e lisonjeia-me para que não me vingue dele.
Pode, no entanto, ter isto por certo: todos os seus belos semblantes não
me podem consolar da grande dor, da vergonha e do mal que causou a
mim e à minha família. Se não fosse vosso sobrinho, há já muito tempo
que o teria feito sentir a minha cólera. Queria nunca mais o ver, nunca
mais lhe falar. Mas é um adágio bem conhecido: um traço repreensível e
comum às mulheres é que não gostam dos parentes dos maridos e não
os podem suportar, nem de dia nem de noite, ao pé delas. Quis, pois,
afastar de mim essa censura, e aceitei os seus belos semblantes e o seu
serviço. Mas não quero mais, doravante, ser abandonada ao seu poder.
Suplico-vos, sire, que me deixeis antes partir convosco.” Soube tão bem
enganar o rei com as suas palavras que este deixou cair a cólera. Foi ter
com Kariado e assegurou-lhe que não havia nenhum amor entre a
rainha e Tristão. Mas Kariado teve o cuidado de ensinar ao rei, com
grande astúcia, o que devia dizer a Isolda para experimentá-la uma
terceira vez.
Portanto, chegada a noite, Marcos disse à rainha: “A minha
partida é coisa bem assente. Ficareis sob a guarda dos meus melhores
homens e dos meus amigos, que vos servirão com grande honra
segundo os vossos desejos e como convém à vossa linhagem. Mas, uma
vez que não vos agrada que o meu sobrinho Tristão vos ofereça o seu
serviço, quero, por amor de vós, bani-lo deste país.” “Sire - replicou
Isolda -, não é necessário agir tão duramente. Depois dirão que vos levei
a esse extremo e que odiava o vosso sobrinho pelo assassínio do
Morholt. Com isso atrairia a reprovação. Ora, não quero que por amor
de mim odieis os vossos parentes. Não passo de uma mulher: se
rebentar uma guerra, os inimigos arrebatar-me-ão depressa a vossa
terra, pois não tenho força para defendê-la. E as pessoas não deixarão
de dizer que, se mandei expulsar Tristão, o mais forte sustentáculo do
vosso país, é porque o odiava com tal rancor que ele não podia
permanecer junto a mim. Escolhei, pois, um destes partidos: deixai-me
acompanhar-vos ou então entregai-lhe a guarda e a defesa da vossa
terra.” Estas palavras de Isolda reanimaram as dúvidas e as suspeitas
que torturavam o rei Marcos. Todavia, guiada por Brangia, a sábia, que
tratava de reparar os erros da sua senhora, esta ainda escapou ao
perigo. Iludindo o seu senhor com palavras falazes, lisonjeando-o com
vãs promessas, soube persuadi-lo de que Tristão nada representava
para ela e que só à maledicência se deviam atribuir as acusações que o
inquietavam. O rei Marcos estava demasiado enamorado da sua bela
mulher para duvidar da sua boa fé. Kariado resignou-se e renunciou
por algum tempo às acusações contra Tristão. No entanto a inveja
havia-se apoderado do seu coração, e não esperava mais que uma
ocasião propícia para afastar Tristão da rainha.
XIII
A HARPA E A ROTA
UM DIA em que Tristão partira a caçar com Gorvenal e os
companheiros na floresta, uma grande e bela nau aportou em Tintagel.
Comandava-a um barão da Irlanda, e a nau pertencia-lhe com tudo o
que transportava. Era orgulhoso e ávido de honras. Cavalgou até à corte
de Marcos num corcel bem ajaezado e ornado, sem escudo nem lança,
mas trazia às costas uma harpa toda incrustada de ouro. Saudou
primeiro o rei e a rainha Isolda. Esta reconheceu-o imediatamente, pois
cortejara-a durante longo tempo, sem êxito, e foi para tornar a vê-la que
viera da Irlanda até a Cornualha. Ela inclinou-se logo para o rei e
segredou-lhe quem era aquele nobre irlandês, mas não achou oportuno
revelar-lhe que durante muito tempo ele a amara e cortejara. No
entanto, pediu ao rei que recebesse o estrangeiro com honra. Marcos fez
como ela queria: convidou o hóspede para jantar, e admitiu-o, em sinal
de amizade, a comer na sua própria escudela. Durante toda a refeição,
o irlandês conservou a harpa pendurada ao pescoço e declarou que não
a pousaria por nada deste mundo, nem mesmo para prestar amizade ou
honra a quem quer que fosse. À volta dele, os senhores troçavam entre
si do homem da harpa, mas este não dava atenção à sua zombaria.
Quando o rei acabou de comer e as mesas foram levantadas, os
barões da corte começaram a recrear-se. Então o rei perguntou, na
presença de todos, ao vassalo da Irlanda se este sabia tocar harpa e se,
por amor dele, não queria tocar uma melodia no seu instrumento. O
irlandês respondeu: “Nunca acedo a recrear um rei num país
estrangeiro se não sei antecipadamente qual será a minha paga.”
“Então - disse o rei -, distrai-nos com algum canto da Irlanda e dar-te-ei
em recompensa o que quiseres.” “Seja” - retorquiu o irlandês. Pegou na
harpa e tocou uma melodia do seu país que agradou muito a todos. O
rei pediu-lhe que tocasse outra, tão bela ou ainda mais bela, e ele tocou
outra duas vezes mais bela que a primeira; era uma alegria escutá-lo.
Quando acabou, disse perante toda a corte: “Rei, executa agora o pacto
a que acedeste.” “Fá-lo-ei com todo o gosto - disse o rei. - Diz-me então
o que pedes como paga.” “Nada mais quero como paga além da bela
Isolda - respondeu o tocador de harpa. - Não tens tesouro nem jóia mais
ao meu desejo.” “Por minha fé - exclamou Marcos - não a terás nunca.
Pede antes uma coisa que me seja possível conceder-te.” O estrangeiro
replicou: “Eis que faltas à tua palavra e rompes a promessa dada em
presença de toda a corte. Segundo a lei e o direito, não deves mais
governar um reino, pois um príncipe que mente publicamente e não
cumpre o juramento não deve conservar o senhorio e o poder sobre os
barões. Se me recusas o que reclamo de ti, entrego a causa ao
julgamento dos homens sábios aqui presentes; e se encontrares alguém
que negue o meu direito e o ouse contestar, defenderei neste dia a
minha causa contra ele sob o olhar de toda a corte. Se renegas a
promessa, não tens mais nenhum direito sobre este reino: prová-lo-ei
contra ti pelas armas, contanto que a tua corte queira pronunciar um
justo julgamento.”
O rei Marcos ouviu este discurso. Olhou em volta para os seus
barões: nem um único se ousa erguer contra o irlandês, chamar a si a
causa do seu senhor e libertar a rainha, pois todos viram que o
estrangeiro era um homem cheio de força e de desmesura, experiente
no manejo das armas. Quando o rei compreendeu que nenhum se
queria arriscar a combater o tocador de harpa, entregou- lhe a rainha:
nenhum dos seus conselheiros ousou levantar a voz para censurar este
abandono.
Então o irlandês sentou Isolda na sela com ele e levou-a, radiante,
para a beira-mar. A rainha ia cheia de dor, chorava o seu destino,
lamentava-se e maldizia a hora em que Tristão partira para a caça. Por
certo que se estivesse lá quando o rei a entregara, tê-la-ia resgatado à
custa de um duro combate: teria preferido perder a vida a não a
reconquistar! O irlandês levou a bela lacrimosa para uni pavilhão
erguido à beira-mar. Depô-la num leito e ordenou que preparassem
imediatamente a nau para darem à vela o mais depressa possível. Mas o
navio estava encalhado em seco na areia, a maré mal começara a subir
e ainda estava muito longe da nau.
Nesse momento, Tristão voltou da floresta. Soube da nova de que
a rainha fora entregue a um tocador de harpa. Chamou Gorvenal, seu
escudeiro, pegou na rota e cavalgou a grande velocidade para o pavilhão
do irlandês. Numa duna que dominava a borda do mar, desceu do
cavalo, entregou-o a Gorvenal e, levando a rota suspensa ao ombro,
dirigiu-se para a tenda. Encontrou Isolda estendida num leito enquanto
o irlandês esforçava-se em vão para consolá-la tocando lais na harpa.
Ela recusava-se a ouvi-lo e lamentava-se cada vez mais. “Senhor - disse
Tristão -, vim a correr para aqui. Disseram-me que éreis da Irlanda;
também sou desse país. Suplico-vos, levai-me convosco para a Irlanda!”
“Vagabundo - respondeu o irlandês -, toca rota para nos recreares, e se
conseguires consolar a minha amada, dar-te-ei um bom “casaco.” “Deus
vos recompense, senhor! Se eu me der ao trabalho de entretê-la, fá-lo-ei
tão bem que, dentro de seis meses, não mostrará a menor sombra de
desgosto.” Tristão afinou a rota, que era um instrumento parecido com
a sanfona e servia sobretudo para as danças e divertimentos do povo.
Tocou uma doce melodia, que acompanhou com belos cantos.
Quando acabou a melodia, a maré subira e a nau estava
desencalhada. Um marinheiro disse então ao barão irlandês: “Senhor,
partamos depressa. Tardais demasiado a fazer-vos ao mar; se Tristão, o
bravo, regressasse da caça, bem poderia atrasar-nos a partida. Tem
mais fama que qualquer outro vassalo deste reino, e ninguém aqui se
lhe ousa opor.” O irlandês respondeu: “Maldito seja o covarde que teme
o assalto de Tristão!” Depois, voltando- se para o tocador de harpa,
pediu: “Irmão, toca mais qualquer coisa para consolar Isolda, a minha
amada, e domar a sua dor.” Tristão afinou de novo a rota e escolheu um
lai deleitável de ouvir: Isolda escutava-o, mergulhada no encantamento.
Preludiou longamente, depois terminou com uns acordes um pouco
tristes.
Enquanto cantava o lai, o fluxo havia subido tão alto que já não
se conseguia passar pela prancha que ia da beira-mar à nau. “Que
fazer? - interrogou o irlandês. - Como levar Isolda para o meu navio?
Deixemos a maré descer o suficiente para que a bela possa atravessar a
ponte a pé enxuto.” Tristão respondeu-lhe: “Tenho além, no vale, um
bom cavalo para levar a rainha até ao teu navio.” “Trá-lo então!” Tristão
foi buscar o corcel, montou-o, agarrou na espada e cavalgou até junto
do vassalo da Irlanda. “Senhor - disse -, confia-me Isolda, a rainha.
Prometo levá-la suavemente.” O irlandês pegou em Isolda e ergueu-a na
ponta dos braços até à sela de Tristão, pedindo-lhe que se comportasse
discretamente com a sua dama.
Tristão recebe Isolda no corcel e exclama: “Escuta, imprudente e
louco! Conquistaste Isolda com a harpa, eu reconquisto-a com a rota.
Se a perdes, é justo: ganhaste-a ao rei com trapaça, eu reconquisto-ta
com astúcia. Regressa, ridicularizado e maldito, à Irlanda, vil
mentiroso!” Esporeia o cavalo, cavalga a toda a velocidade pela costa, e
daí para a floresta. O irlandês perdeu Isolda, Tristão leva a amante. Ao
cair da tarde estavam na floresta, e juntos passaram uma bela noite.
De manhã, ao romper do dia, Gorvenal veio avisar o seu senhor
de que o irlandês se fizera ao mar, lastimoso e totalmente confundido.
Só então Tristão cavalgou com a rainha até ao palácio de Marcos e lha
entregou: “Pela minha fé, sire, uma mulher não é de modo algum
obrigada a amar um homem que a entrega por uma ária de harpa.
Guardai-a melhor para outra vez, pois foi necessária grande astúcia
para reconquistá-la.”
XIV
A AVELEIRA E A MADRESSILVA
A SEGUIR a Kariado, os barões inimigos de Tristão
surpreenderam a verdade dos seus amores com a rainha. Audret,
Guenelon, Gondïne e Denoalen denunciam ao rei Marcos aquilo a que
chamam “a traição do sobrinho”. O rei aflige-se: ouve contrafeito esta
revelação que perturba a sua felicidade e mancha a reputação daquela
que ama. Todavia, deixa-se de novo invadir pelas dúvidas e pelas
suspeitas; e novamente se apanha a espiar as palavras e os atos da
rainha e, desta vez, sob pretexto de pôr fim a rumores ofensivos, ordena
a Tristão que deixe a corte e parta para uma terra distante. E,
sobretudo, que não tenha a ousadia de voltar ao seu palácio antes de
lhe ser dada ordem para tal.
Tristão é forçado a obedecer, pelo menos em aparência, à ordem
do rei: nunca mais aparece na corte, mas é-lhe impossível ficar muito
afastado da sua dama. Em vez de se exilar num país estrangeiro,
contenta-se em ficar escondido num subúrbio de Tintagel, em casa de
um habitante que lhe dá asilo, em segredo, a ele e a Gorvenal. Todos os
dias, ou quase, Brangia, que conhece o refúgio de Tristão, arranja-lhe
encontros furtivos com a amada.
Mas em breve Tristão se sente cercado pelos inimigos: por isso
abandona o refúgio e esconde-se sozinho na floresta, a fim de não ser
visto por ninguém. Só sai à tardinha, quando é possível encontrar um
alojamento. À noite, é albergado por camponeses ou pessoas pobres.
Junto deles, informa-se do que faz o rei. Por eles fica sabendo que
Marcos deve empreender dentro em pouco uma viagem com toda a sua
gente, para reunir a corte, no dia de Pentecostes, num local que fixou.
Haverá muitos folguedos e divertimentos, e a rainha estará na festa. Ao
ouvir isto, Tristão sente uma grande alegria: Isolda não poderá dirigir-se
à assembléia sem que ele a veja passar.
No dia em que o rei se põe a caminho, Tristão esconde-se numa
moita ao longo da estrada por onde deve passar o cortejo. Corta um
ramo de aveleira ao meio, depois fende-o e esquadria-o. Quando acaba
de apará-lo, grava-lhe com o punhal as letras do seu nome, pois é um
sinal convencionado entre a rainha e ele. Sabia que Isolda se
aperceberia dele, pois era muito atenta a essas coisas e já lhe
acontecera dar-se desse modo conta da presença de Tristão.
Reconhecerá logo, mal o veja, o pau preparado e ornado pelo amante.
Ao mesmo tempo, Tristão enviou-lhe uma carta com o seguinte
teor: “Bela amiga, sabei que por amor de vós continuo escondido na
floresta. Aí tenho permanecido à espera de encontrar o meio de voltar a
ver-vos, pois é-me impossível viver sem vós: nós dois somos como a
madressilva quando se enrola à volta do ramo da aveleira: uma vez a ela
ligada e presa, ambas podem durar juntas eternamente, mas, se as
querem separar, a madressilva morre em pouco tempo e o mesmo
sucede à aveleira. Bela amiga, tal é o nosso caso: nem vós sem mim,
nem eu sem vós!”
No dia fixado, Tristão viu primeiro passar os monteiros com os
cães, em seguida os barões que escoltavam o rei. Em breve, no meio das
aias, entre duas filas de homens de armas, aparece a cavalo a rainha,
observando tudo atentamente. Assim, viu, cravado no talude, o ramo
aparado e gravado, e compreendeu imediatamente a mensagem que lhe
trazia, pois conseguiu decifrar todas as letras. Mandou parar os
cavaleiros que seguiam com ela: quer descer do cavalo e repousar.
Obedecem à sua ordem. Afasta-se da escolta e leva consigo a criada
Brangia através do bosque. Isolda encontra aí aquele que a amava mais
que nenhum ser no mundo: fala- lhe à vontade e ela responde-lhe a
contento; promete que o ajudará a reconciliar-se com o rei: Marcos,
assegura-lhe, está muito triste por tê-lo banido após as acusações
levantadas contra ele. Quando chega o momento da separação, os
amantes começam a chorar. Ela diz-lhe: “Querido amor, disseste a
verdade: sou a madressilva e tu a aveleira, ninguém nos poderá separar
um do outro sem causar a morte de ambos.”
Em recordação da alegria que experimentara ao rever a amante,
Tristão, que escrevera todas as palavras da rainha tal como esta as
pronunciara, fez um novo lai de harpa; chamam-lhe Goatleaf em inglês,
os franceses denominam-no Chévrefeuille. O refrão é:
Bela amada, assim é conosco: Nem vós sem mim, nem eu sem
vós.
Brangia, a avisada, aproveitou esta entrevista com Tristão para
combinar com ele um novo estratagema que lhe devia permitir
encontrar-se secretamente com a rainha durante a noite. No pomar,
fechado por estacas e fortes paliçadas que cercavam a residência real,
brotava uma fonte à sombra de um grande pinheiro. As suas águas
frescas e puras, depois de encherem um tanque cavado numa escadaria
de mármore, corriam para o castelo por um canal aberto, e
atravessavam o quarto das mulheres segundo um antigo costume dos
celtas. Tristão viria de noite ao pomar, à fonte; deitaria aí aparas com
sinais gravados com a ponta do punhal; quando Brangia as visse
deslizar na água do canal, preveniria imediatamente a rainha, que iria
ter com ele.
Como a vara de aveleira, aparada e gravada com letras por
Tristão, indicara a sua presença na floresta, assim, durante várias
semanas, as aparas gravadas com os sinais combinados permitiram aos
dois amantes reunirem-se todas as noites ao pé da escadaria de
mármore, à beira da fonte, debaixo dos ramos do grande pinheiro. E tal
era o encanto do pomar real sob o céu estrelado que Isolda dizia por
vezes a Tristão: “Não será este o pomar maravilhoso de que falam os lais
bretões? Uma muralha de ar intransponível fecha-o por todos os lados;
no meio das árvores em flor, o herói vive sem envelhecer nos braços da
amante e nenhuma força hostil pode quebrar a muralha de ar.” Mas
quando se apagava a última estrela, o encantamento desaparecia e
Tristão apressava- se a transpor a alta paliçada para regressar ao seu
refúgio.
XV
MARCOS EMPOLEIRADO NO PINHEIRO
GRANDE
AUDRET e os barões traidores viam bem que Isolda recuperara a
alegria e adivinhavam sem esforço que achara maneira de rever Tristão.
Mas era em vão que espiavam as idas e vindas da rainha para descobrir
o segredo. Brangia montava tão bem a guarda que se fatigavam sem
lucro algum. O duque Audret propôs aos cúmplices empregarem outra
tática: “Conheceis, senhores, Frocin, o anão corcunda: conhece a arte
da magia, lê o futuro nos sete planetas e no curso das estrelas. Ele, que
sabe descobrir as mais secretas coisas, poderá sem dúvida revelar-nos
as astúcias de Isolda, a loura.”O aleijão, que era mau e invejava a
felicidade dos amantes, não se fez rogado. Observando o curso de Orion
e de Lúcifer, descobriu o lugar e a hora dos encontros noturnos dos
dois, na fonte do pomar. O duque Audret levou o anão a Marcos e
arranjou-lhe uma entrevista com o rei: “Sire — disse o feiticeiro —, fazei
constar que partireis esta noite para a floresta para caçar durante sete
dias. Antes de soar a meia-noite, regressai bruscamente a Tintagel e eu
conduzir-vos-ei, no pomar, a um lugar donde podereis ver o encontro de
Tristão e da rainha e ouvir-lhes as palavras. Que eu seja enforcado se
ficardes decepcionado com a espera!” O rei seguiu o conselho do anão,
mas contra vontade. Chegada a noite, deixou os monteiros nos bosques,
montou o anão na garupa e regressou a Tintagel. Sem hesitar, Froncin
conduziu-o ao pinheiro grande: “Rei, deveis agora subir para um ramo
desta árvore e dissimularde-vos para melhor espiardes a vossa mulher e
o vosso sobrinho. Se me acreditais, levai convosco o arco e as flechas:
poderão servir-vos quando estiverdes esclarecido sobre a sua conduta.
Mantende-vos quieto: não tereis de esperar muito.”O anão dissera a
verdade: o rei não esperou nada. Do alto da árvore, Marcos viu Tristão
transpor a paliçada e saltar para o pomar; avançou direto à fonte e
deitou ai as aparas gravadas com letras, que não tardaram a correr,
ligeiras, pelo canal através do jardim e para o quarto das mulheres. Mas
Tristão, inclinando- se sobre o tanque de mármore para atirar outras,
viu subitamente, à claridade da Lua, o rosto do tio que se refletia,
enquadrado pela folhagem, no espelho de água tranqüila. Observando
mais de perto, distinguiu também, entre os ramos, o arco, já armado
com uma flecha, que o rei segurava na mão. Ah!, se pudesse reter as
aparas na sua fuga! Mas não! No quarto das mulheres, Isolda espreita a
sua vinda e em breve as verá deslizar no fio de água. Eis que transpõe a
porta do quarto e se dirige para o pomar, ágil e no entanto prudente,
olhando para todos os lados, a fim de ver se não a espionam. Ora,
Tristão, nessa noite, não vem ao seu encontro como das outras vezes e
nem sequer a fita; está imóvel, os olhos fixos na água do tanque como
que para lhe fazer compreender que há ali qualquer coisa insólita. Esta
estranha atitude não deixa de surpreender Isolda, que também volta o
olhar para a superfície da água e não tem dificuldade em aí descobrir
por sua vez o reflexo do rosto inquieto e atormentado do marido.
Lembra-se então de um ardil bem feminino, pois livra-se de levantar os
olhos para os ramos da árvore e, a fim de tirar Tristão de apuros,
dispõe-se a falar em primeiro lugar: “Senhor Tristão, que loucura vos
deu para me chamardes a esta hora? Em nome Daquele que fez o Céu e
a Terra, não me chameis mais, nem de dia nem de noite, pois, dessa
vez, não virei. Todavia vós bem o sabeis: o rei julga que eu vos amo
loucamente. Os barões traidores fazem-no crer que vós, que sois a
defesa da sua honra, o ridicularizais sem vergonha. Em verdade,
preferiria ser queimada viva e que a minha cinza fosse dispersa ao vento
a amar outro homem que não seja o meu senhor. Não, Tristão, não me
chameis mais sob nenhum pretexto: não ousaria nem poderia vir; se o
rei soubesse da nossa entrevista desta noite, condenar-me-ia à morte
esquartejada por quatro cavalos. Por certo que me sois caro, porque
sois seu sobrinho. Aprendi com a minha mãe que devia amar os
parentes de meu marido: observo esse preceito. E penso que uma
mulher não amaria verdadeiramente o seu senhor se não amasse
igualmente os seus parentes e os seus próximos aliados. Mas vou-me
embora que estou a demorar demasiado!” “Senhora, por amor de Deus,
escutai-me! Em boa fé, por várias vezes tentei encontrar-vos. Desde que
fui banido da corte, não sei onde vos falar. Sofro grandemente com as
suspeitas que meu tio faz pesar sobre mim: por que dará fé a tais
calúnias? Por que acreditará nas mentiras daquelas pessoas que vimos
mudas e trêmulas perante o desafio do Morbolt? Fazei-me favor, peçovos,
de me justificar vós mesma junto de vosso marido!” “Por Deus,
senhor, que me pedis? Convencê-lo da vossa lealdade? Obter-vos o seu
perdão? Isso seria provocar, em vão, a cólera do rei! No entanto, ficai
sabendo, belo senhor, que, se ele vos perdoasse e esquecesse a cólera,
ficaria cheia de alegria. Mas vou indo, pois tenho medo que alguém vos
tenha visto chegar.”Tristão retém ainda a rainha e suplica-lhe que
interceda por ele junto de Marcos: “Já que o rei me odeia tanto, partirei.
Mas obtei-me pelo menos com que comprar as minhas armas e o
cavalo, que tive de empenhar a fim de poder subsistir.” “Por Deus,
Tristão, admiro-me que ouseis fazer-me semelhante pedido. Quereis
então perder-me?” E afasta-se, orgulhosa e digna. Tristão, fingindo uma
viva emoção e como que cambaleando, apoia-se à escadaria de mármore
e diz alto: “Ah!, Deus, nunca pensei um dia sofrer tal perda e exilar-me
em tão grande pobreza. Ai de mim! Vou partir sem armas nem cavalo,
pois empenhei o arnês e não o posso resgatar. Deus, afastaste-te de
mim! Quando estiver em terra estrangeira, se ouvir dizer que um rei
procura homens a soldo para uma guerra, não ousarei pronunciar uma
palavra: um homem nu não tem nenhuma razão para falar. Ah, meu
tio, é preciso que me conheças muito mal para desconfiares assim de
traição! Atribuis-me uma atitude que é o oposto dos meus
sentimentos.”O rei, nos ramos da árvore, regozija- se ingenuamente
com a fidelidade de Isolda e a lealdade de Tristão; irrita-se contra os
delatores: “Desta vez — pensa —, vejo bem que o anão me logrou: foi
para minha maior confusão que me mandou subir à árvore. Mentiu-me
acerca do meu sobrinho; por isso o mandarei enforcar e também por
ter-me feito conceber aversão a minha mulher. Agi como um louco, mas
aquele que me levou a isso não esperará muito pelo castigo. Se
conseguir apanhar esse anão odioso, fá-lo-ei acabar os seus dias no
fogo.” Repete para si mesmo que tem fé na mulher: de futuro recusarse-
á a acreditar nos que a tentarem difamar. Nunca retirará a confiança
a Tristão e a Isolda: deixá-los-á de novo ir e vir juntos no quarto real à
vontade.De retorno ao castelo, a rainha narra a aventura a Brangia e
como, por meio de uma bela astúcia, escapou à armadilha que lhe fora
armada: “Bela amiga, quem me dera que nos tivesses ouvido, a Tristão e
a mim, queixarmo-nos e lamentarmo-nos à porfia! Por um triz que o rei
não se deu conta da verdade. Sai-me verdadeiramente bem deste mau
passo!” Quando Brangia a ouviu, não lhe poupou a admiração: “Deus,
que nunca enganou, concedeu-vos uma grande graça ao permitir-vos
chegar ao termo da entrevista sem terdes dito uma única palavra que
vos pudesse comprometer. Deus realizou um grande milagre convosco:
agiu como o verdadeiro Pai, pois preocupa-se em não fazer mal àqueles
que são bons e leais.”No dia seguinte, de manhã, Marcos quis fazer
desaparecer as últimas inquietações acerca da rainha. Penetrou no
quarto de Isolda, que sentiu grande emoção: “Sire, em nome de Deus,
donde vindes? Tendes algum assunto premente, para virdes assim
sozinho?” “Senhora, é a vós que venho falar e perguntar uma coisa; não
me escondais, pois, a verdade, porque é a ela que eu quero conhecer.”
“Sire, nunca em dias da vida vos menti: mesmo que tivesse de morrer
aqui, diria a verdade toda e inteira, não mentiria numa única palavra.”
“Então, desde há quanto tempo não vedes Tristão?” “Sire, não me ides
acreditar, mas eis o que se passou: vi-o esta noite mesmo e falei-lhe sob
o pinheiro que abriga a escadaria de mármore. Sim, senhor, vi o vosso
sobrinho no lugar que disse. Mandara-me dizer para ai me encontrar
com ele: a minha honra obrigava-me a satisfazer o desejo daquele por
quem me tornei rainha da Cornualha, esse Tristão que amo unicamente
porque é vosso sobrinho. De preferência a voltar para o exílio, desejava
que o reconciliasse convosco; recusei-me a fazê-lo com medo desses
traidores que vos fazem crer no mal. Disse-lhe que partisse e nunca
mais me procurasse, pois não podia fazer nada por ele, nem devolverlhe
a vossa amizade, nem dar-lhe com que resgatar o arnês que
empenhara.” O rei sabe perfeitamente que ela falou verdade; cem vezes
a beija e abraça. Declara que lhes devolve a confiança para sempre, a
ela e a Tristão. Confessa-lhe que assistiu à entrevista noturna,
empoleirado nos ramos do pinheiro grande. “Sire, estáveis realmente no
pinheiro?” “Sim, senhora, por São Martinho, não houve uma única
palavra que me escapasse, fosse em voz alta ou baixa. Quando ouvi
Tristão dizer que empenhara o cavalo e o arnês e que não tinha sequer
com que os resgatar, apoderou-se de mim tal piedade que quase caí da
árvore. Ouvi quando vos recusastes a pagar-lhe o penhor e vi que não
vos aproximastes um do outro. Sorri de contentamento no cimo da
árvore.” “Sire, o que contais é-me de grande reconforto. Agora sabeis
com certeza que a ocasião era propícia para nos beijarmos e
abraçarmos, se nos amássemos com amor culpado. Mas em nenhum
momento o vistes aproximar-se de mim, ter uma atitude inconveniente
ou abraçar- me.” “Por Deus, não — respondeu o rei. —Sabeis, franca e
honrada dama, por que me embosquei naquela árvore? Foi Frocin, o
anão corcunda, quem mo aconselhou: o vil mentiroso pretendia ter lido
nas estrelas que vós tínheis, nessa noite, um encontro amoroso com
Tristão, na fonte do pomar. Jurou-me que vos apanharia aos dois em
flagrante, contanto que consentisse em espiar-vos do alto do pinheiro
grande.”Marcos volta-se então para Brangia: “Moça, vai buscar o meu
sobrinho a casa do hospedeiro que lhe dá asilo. Se ele pretextar seja o
que for e não quiser escutar-te, diz-lhe que eu lhe ordeno que me venha
ver.” Brangia, a astuta, não resiste à tentação de se divertir também
com a credulidade do rei Marcos e, para afastar qualquer suspeita de
cumplicidade com os amantes, responde: “Sire, Tristão odeia-me! Sem
razão alguma, Deus o sabe, diz que é por minha culpa que se pôs de
mal convosco. Irei no entanto, pois, por amor de vós, poupar-me-á e
não me fará mal algum. Sire, em nome de Deus, reconciliai-me com ele
quando chegar.” Olha a pérfida: contava propositadamente histórias e
queixava-se sem motivo para melhor enganar o rei Rindo, corre para a
porta e sai.Uma hora depois, Tristão apresentou-se diante de Marcos,
que lhe devolveu toda a confiança: autorizou-o a dormir de novo, como
os outros fiéis, no quarto do rei.Entretanto, numa clareira da floresta, o
anão Frocin interrogava o curso das estrelas para conhecer o resultado
do estratagema que aconselhara. Leu no céu que a rainha e Tristão
haviam escapado pela astúcia à armadilha que lhes fora armada e que
haviam, mais uma vez, acalmado as suspeitas do rei. Leu também que
Marcos voltara o furor contra ele e que prometera matá-lo para vingarse
do papel humilhante que o infame feiticeiro o fizera representar. O
anão, no mesmo instante, ficou negro de medo e de vergonha; tomado
de pânico, fugiu sem parar para a terra de Gales.
XVI
A FARINHA-FLOR
O AMOR é insaciável e nenhuma razão o governa. Um gesto, um
olhar, um suspiro, bastam para revelá-lo. O descuido dos amantes fazia
o jogo dos inimigos. Desde que Marcos renunciara a suspeitar deles,
Tristão e Isolda, negligenciando os avisos de Brangia, não hesitavam em
encontrar-se em pleno dia. Os traidores, que os observavam e só
aguardavam a ocasião de denunciá-los, estavam bem resolvidos a tirar
desforra.
Tristão ia e vinha livremente no castelo e visitava a rainha nos
aposentos das mulheres. Um dia em que estava com Isolda, os traidores
surpreenderam-nos. “Desta vez — pensaram — temo-los na mão: será
milagre se escaparem!” Foram contar tudo a Marcos e envergonharamno
da cegueira: “Sire, uma grande infelicidade vos ameaça. A rainha
ama Tristão e é correspondida. Toda a gente na corte, salvo vós, está
convencida da sua traição. Eis-vos agora prevenido, a vós compete
defender a vossa honra afastando vosso sobrinho!” O rei escuta-os,
suspira, baixa a cabeça, cala-se. “Não, rei, não o agüentaremos mais,
pois sabemos que esta notícia, há pouco estranha, já não te
surpreende. Consentes, pois, no seu crime. Que farás? Delibera e
aconselha-te. Quanto a nós, se não banires o teu sobrinho para sempre,
retiramo-nos para os feudos e levaremos também os vizinhos para fora
da tua corte. Eis a escolha que te oferecemos; decide-te.” “Senhores,
uma vez acreditei nas feias palavras que dizíeis de Tristão e arrependime.
Mas vós sois os meus fiéis, não quero perder o serviço dos meus
homens. Aconselhai-me pois, peço-vos, é o vosso cargo.” Os barões
replicaram: “Se quereis seguir o nosso conselho, mandai chamar o anão
Frocin, que injustamente banistes. Tendes-lhe rancor por causa da
vossa desventura no pomar. Todavia, não leu nas estrelas que a rainha
e Tristão se encontrariam nessa noite debaixo do pinheiro? Sabe muitas
coisas; segui o seu conselho.”
O maldito acorreu e ensinou ao rei novo ardil à sua moda: “Sire,
ordena ao teu sobrinho que amanhã, ao alvorecer, cavalgue até
Carduel, para levar ao rei Artur uma carta em pergaminho, selada com
o teu sinete. Tristão dorme no teu quarto e da cama dele à tua não vai
mais que o comprimento de uma lança. Na hora do primeiro sono sairás
do quarto com os teus fiéis sob o pretexto de ir caçar. Juro-te que
Tristão, porque ama loucamente a rainha, tentará falar-lhe antes de
partir e irá ter com ela ao leito. Saberás então a confiança que ele
merece. Mas livra-te de dizeres alguma coisa ao teu sobrinho antes de
se deitarem!” O rei deu o seu acordo. O anão correu até uma padaria e
comprou um saquinho de farinha-flor que escondeu no casaco. Em
seguida regressou ao palácio sem ser visto.
Já noite escura, quando chegou a hora de o rei se deitar, Tristão,
como de costume, encontrava-se presente. Marcos disse- lhe: “Querido
sobrinho, um grave problema me preocupa e só tu me podes ajudar. É
preciso que amanhã cavalgues até Carduel, onde reside o rei Artur.
Saudá-lo-ás da minha parte e entregar-lhe-ás esta carta selada com o
meu grande sinete de cera. Dorme bem, pois o caminho é longo e duro e
ser-te-á necessário partir ao romper do Sol.” Tristão recebeu esta ordem
com desagrado, pois custava-lhe sempre afastar-se da rainha, mas
consolou-se dizendo para consigo mesmo que a ausência seria curta.
Um desejo furioso de falar à rainha antes da partida apoderou-se dele:
prometeu a si próprio que, pouco antes do amanhecer, se Marcos
estivesse a dormir, se aproximaria do leito real e falaria com Isolda para
despedir-se. Este agradável pensamento mantinha-o acordado, gozando
antecipadamente o prazer que o esperava, quando um ligeiro barulho
lhe atraiu a atenção. Inclinou-se e viu a porta abrir-se. O anão
introduziu-se furtivamente no quarto e entregou- se a uma estranha
manobra: extraindo a farinha-flor do saco que segurava debaixo do
braço, espalhava-a no solo, entre a cama de Tristão e a da rainha. Se
um dos amantes fosse ter com o outro, a farinha conservaria a marca
dos passos. Tristão pensou então: “Este anão não costuma fazer-me
bem; se espalha a farinha, só pode ser para me prejudicar. Mas ficará
desiludido: não sou louco para deixar no chão o rasto dos meus pés!”
Uma profunda obscuridade reinava agora no quarto. O anão,
realizada a tarefa, desaparecera apagando as velas. A meia-noite, o rei
vestiu-se e saiu com os barões com toda a aparência de ir caçar à
espera na floresta. Tristão e Isolda ficaram sozinhos com Périnis, o
lacaio irlandês que dormia ao pé do leito real. Tristão julgou o momento
favorável para se aproximar de Isolda, mas achou um hábil subterfúgio
para desmanchar o ardil de Frocin: lentamente, ergueu-se na cama,
juntou os calcanhares e, com um brusco impulso, saltou a pés juntos
para a cama do rei. O seu ardor juvenil faz-lhe esquecer que um javali
lhe abrira a coxa com as presas, no recurso de uma caçada, dois dias
antes. O esforço que faz para saltar reabre a ferida mal fechada e o
sangue jorra nos lençóis da rainha. Todo entregue ao prazer, Tristão
não sente a dor.
Lá fora, nesse mesmo instante, observando a face da Lua, o anão
sabe, pela sua arte de sortilégio, que os amantes se unem na carne.
Exulta de alegria e, correndo para Marcos, diz-lhe: “Vai agora e, se não
os surpreenderes juntos, manda-me enforcar!” O rei entra
imediatamente no quarto seguido pelo anão e pelos quatro traidores.
Mas Tristão ouviu-os; com novo impulso, arremessa-se, salta e cai na
cama. Gotas de sangue salpicam aqui e ali o chão coberto de farinhaflor;
os lençóis de Tristão também estão vermelhos. A toda a pressa, o
rei manda acender as velas e olha em redor. Fica desapontado, pois não
vê pegadas na farinha-flor e os dois amantes parecem dormir
sossegadamente, cada um em sua cama. Então o anão mostra ao rei as
manchas de sangue nos dois leitos e as gotas vermelhas na farinha-flor.
O rei diz a Tristão: “Eis indícios irrefutáveis: o teu crime está provado,
não servirá de nada defenderes-te. Em verdade, Tristão, nunca em toda
a minha vida senti tal furor, pois nunca fui ultrajado nem metido a
ridículo como tu acabas de fazer! Que comédia não me representastes, a
rainha e tu, sob os ramos do pinheiro grande! Mas o castigo de ambos
será proporcional ao vosso crime.”
Desta vez os amantes foram apanhados em flagrante. Os barões,
superando a covardia, atiram-se sobre Tristão sem nenhum cuidado
com a ferida e atam-no fortemente com cordas. Se o bravo tivesse a
espada, estes covardes não teriam ousado levantar a mão para ele, mas
tinham-no desarmado, à sua mercê! “Querido tio—falou Tristão—, as
aparências condenam-nos e nenhuma denegação serviria. Todavia, não
há homem em tua casa que, se ousasse sustentar a mentira de que
amo loucamente a rainha, não me encontrasse logo pronto a defrontá-lo
em campo fechado. Ponho confiança em Deus e estou certo de que, se
me permitisses defender-me em combate singular, nenhum guerreiro se
encontraria que pegasse em armas contra mim. Mas pelo Deus que
sofreu a Paixão, imploro a tua clemência, não para mim, mas
unicamente para Isolda, pois não falhou. Sire, não te vingues nela!” Ao
dizer, estas palavras, voltou-se para a rainha e inclinou-se
profundamente. “Não há piedade!”—gritaram os traidores. “Sire —
continuou Tristão —, podes ordenar a minha morte: sem a ter merecido,
não a temo no entanto . Mas em nome do Pai da misericórdia, peço-te,
poupa Isolda!” Marcos, branco de cólera, voltou a cabeça e não se
dignou responder. Os barões apoderaram- se da rainha e amarraram
tão rudemente os seus delicados membros que a carne ficou toda
pisada. Em seguida, fecharam os amantes num reduto cujas saídas
mandaram guardar durante o resto da noite. A partir desse instante,
Marcos estava bem resolvido a castigar os culpados sem outra forma de
processo: jurou que, no dia seguinte de manhã, os mandaria consumir
a ambos no fogo e que as cinzas, seriam espalhadas ao vento, como era
uso para os traidores.
XVII
O SALTO DA CAPELA
O BOATO de que o rei surpreendera juntos Tristão e a rainha
graças aos sortilégios do anão Frocin corre e espalha-se por toda a
cidade: Marcos, na sua cólera, resolveu condená-los à morte sem
julgamento. Choram grandes e pequenos. Não há ninguém, entre o
povo, que se não apiede da sorte dos amantes nem deseje o Inferno para
o anão, causa de todo o mal. “Ah! — diziam — temos boas razões para
chorar e nos afligir! Como pode o rei enviar para o suplicio o bravo que
sozinho ousou combater o Morbolt e nos libertou da servidão? Não
admitiremos que o seu corpo seja destruído. Ah, rainha nobre e
honrada, haverá alguma terra onde se tenha visto nascer uma filha de
rei com o teu valor? Ah, anão maldito, oxalá a tua feitiçaria não
conduza à sua perda! Levantemo-nos contra tal iniqüidade: vamos ter
com o rei, ele tem de nos ouvir!” E eis o povo que, em grande tumulto,
se junta diante do palácio para implorar o perdão dos dois cativos As
lamúrias e os gritos redobram, mas tal é o furor do rei que nenhum
barão ousa arriscar uma única palavra para aplacá-lo.
A noite chegava ao fim. Já à aurora iluminava a cidade e os
campos. Marcos, que não pudera dormir, de tal modo o seu coração
estava atormentado, levantou-se cedo e cavalgou com os fiéis até uma
vasta planície, a alguma distancia das muralhas da cidade. Ordenou
que cavassem uma vala profunda e aí deitassem um monte de sarmento
de vinha e moitas de espinheiros-alvares e acácias-da-europa
arrancadas com as raízes. A primeira hora, convocou ao som da
trombeta os vassalos da Cornualha, que chegaram por caminhos e
atalhos, em grande pressa. Quando já se encontravam reunidos na
planície, o rei dirigiu-lhes a palavra: “Senhores, a minha mulher e o
meu sobrinho são acusados de traição para comigo. Seguindo a lei do
país, pagarão esse crime com a vida e, por minha vontade, os seus
corpos serão reduzidos a cinzas na pira.”
Ao som destas palavras, um longo clamor elevou-se da multidão:
“Sire, piedade para Tristão! Piedade para Isolda! Não foram julgados:
concedei-lhes uma prorrogação para ouvir a sua defesa! Seria um
grande pecado condená-los à morte sem julgamento.” Mas nada
conseguia acalmar a cólera de Marcos. “Em nome d'Aquele que criou o
Céu, a Terra e o Inferno — exclamou —, ainda que com isso perdesse o
meu reino, nada me poderá desviar do meu desígnio! Declaro-vos: se
mais alguém ousar requerer um julgamento para eles, esse será o
primeiro a arder neste braseiro.” Ordena que acendam o fogo e que vão
primeiro buscar Tristão à prisão: ele deve ser queimado em primeiro
lugar. Os espinheiros começam a flamejar e a crepitar, todos se calam,
o rei aguarda ansioso. Os lacaios correm até ao quarto onde os amantes
estão estreitamente guardados. Arrastam Tristão com as mãos atadas.
Quando a rainha vê partir o amado, chora e sente grande dor. “É uma
grande vergonha—diz—ver Tristão todo amarrado e tratado como um
devasso! Doce amigo, daria de bom grado a minha vida para salvar a
tua: saberias vingar-me em seguida.”
Escutai, senhores, como Deus, que nos julgará a todos, teve
piedade dos amantes: os lamentos que deixaram Marcos insensível,
ouviu-os Ele e tomou em conta as preces da multidão por aqueles que
iam suplicar. No caminho que ia do castelo à planície onde a pira estava
armada elevava-se, por cima do oceano, uma colina escarpada onde se
situava uma capela, batida pelo vento norte. Se um esquilo saltasse do
alto do rochedo, não conseguiria salvar- se, morreria imediatamente. A
abside da capela, construída no rés da falésia, era furada por um único
vão guarnecido com um vitral em tons purpúreos, que um santo,
outrora, executara com as suas próprias mãos. Quando Tristão e os
guardas passaram diante da capela, viram, pela porta entreaberta, que
a nave estava cheia de gente que rezava ao santo pela salvação dos
condenados. Então Tristão pediu aos que o levavam: “Senhores, deixaime
entrar nesta capela: já não me resta muito tempo para viver e
gostaria de pedir a Deus que me concedesse a remissão dos meus
pecados. Que receais? Esta porta é a única por onde se pode entrar e
sair: tenho mesmo de passar por aqui e vós estais armados com sólidas
espadas. Desprendei-me por um instante, pois não convém que um
homem, amarrado como estou, entre para rezar num lugar santo.” Os
guardas estavam indecisos e interrogavam-se um ao outro sobre o que
deviam fazer: “Ele tem razão — disse um deles. — Que arriscamos?
Podemos soltá-lo um instante e deixá-lo ir: como poderia escapar-nos,
uma vez que não há outra saída além desta?” Os guardas desamarramno
e deixam-no entrar. Tristão transpõe a soleira sem se apressar;
depois, com um passo rápido, atravessa a nave por entre os fiéis
prosternados, avança para o coro até atrás do altar e salta para a janela
do belo vitral. Abre-a e, com um brusco impulso, atira-se no vácuo.
Mais valia correr o risco de partir os ossos contra a falésia do que ser
ignominiosamente queimado sob os olhares de todos! Senhores, havia
ao rés da falésia, mesmo embaixo da janela, uma larga mesa de pedra:
Tristão aterrou sem se magoar nesse patamar, pois, por vontade de
Deus que o protegia, o vento engolfara-se nas roupas e amortecera-lhe a
queda. Ainda hoje, as pessoas da Cornualha mostram este patamar e
chamam-lhe “O salto de Tristão”. Da mesa de pedra, Tristão pulou para
a areia e correu a toda a velocidade pela charneca, na direção da
floresta. Vários dos que estavam a rezar na capela vieram à janela e
gritaram que era milagre, vendo Tristão são e salvo fugindo à beira-mar.
Enquanto Tristão se volta um instante e vê subir ao longe o fumo
da fogueira, as testemunhas da sua evasão espalham-se pela cidade, de
tal modo que em breve a notícia é conhecida de todos. O fiel Gorvenal
acorre imediatamente à rédea solta e, levando também o cavalo de
Tristão, junta-se-lhe na charneca: “Amigo, trago-te a espada, o lorigão,
o elmo e o cavalo: Deus concedeu-te a liberdade, ser-te-á necessário
combater duramente para conservá-la.” Tristão, sem dizer palavra,
endossou o lorigão, enfiou o elmo, cingiu a espada e saltou para a sela
do cavalo que Gorvenal lhe trazia. Apenas armado, Tristão quis logo
arremessar-se contra a pira, cuja crepitação chegava até ele. “Deus
concedeu-me a liberdade — disse —, mas de que me serve, se estou
separado de Isolda? Antes me tivesse esmagado contra a pedra ao saltar
da capela! Isolda, Isolda, minha doce amante, estou livre, mas tu vais
ser queimada!”
Gorvenal agarra-lhe no braço e segura-o: “Filho, não nos
apressemos, aguardemos o momento propício. O furor do rei é extremo
e os burgueses estão aterrorizados. Os que mais te amam, se ele Lhes
mandar baterem-te, não ousarão desobedecer, pois, como se costuma
dizer, cada um se ama mais que ao próximo. Assim, deixar-te-ás
apanhar e matar em vão, sem proveito para Isolda.” Tristão abanou a
cabeça e pareceu resignar-se. “Que me aconselhas?” “Vês ali embaixo
aquele espesso bosque, cercado por fossos? Escondamo-nos lá e
ouviremos sem ser vistos o que dizem as pessoas que passam pela
estrada. Por eles saberemos o que acontecerá a Isolda e poderemos, no
momento mais favorável, quando a emoção da multidão atingir o auge,
surgir bruscamente a galope e raptá-la, se Deus nos ajudar, à viva
força.” “Embosquemo- nos então!”
Ora, quando Tristão saltara da capela ao pé da falésia, um pobre
homem que passava por ali vira-o levantar-se e fugir. Correu ao castelo
do rei e chegou ao cárcere da rainha. E antes que os guardas o
pudessem afastar gritou-lhe: “Rainha, não chores mais! O teu amado
fugiu.” “Deus seja louvado — disse Isolda.
Agora, que os traidores me amarrem ou desamarrem, que me
poupem ou me matem, não me importa já! Uma vez que Tristão está
livre, sei que os traidores e o anão, seu maldito servidor, terão em breve
a recompensa devida! Agora, não chorarei mais.”
XVIII
ISOLDA ABANDONADA AOS LEPROSOS
QUANDO o rei Marcos soube que o sobrinho fugira saltando pelo
vitral da capela, o seu furar ainda aumentou mais: ficou branco de
cólera. Ordenou que sua mulher fosse trazida sem demora para ser
queimada publicamente na pira. Quando ela apareceu, cercada de
guardas, pálida e desfigurada, os punhos ensangüentados pelos nós
que os estreitam, gritos indignados elevaram-se da multidão.
Dinas, o bom senhor de Lidan, que era amigo de Tristão, lançouse
aos pés do rei: “Sire, suplico-te, ouve-me! Servi-te durante muito
tempo com toda a lealdade, sem disso tirar algum proveito: durante
todo o tempo em que desempenhei junto de ti as funções de senescal,
não há um homem pobre, um órfão ou uma mulher velha a quem tenha
exigido injustamente um único denário. Em recompensa, concede-me o
perdão da rainha. Queres queimá-la sem julgamento: seria cometer
uma perversidade e agir contra o direito e os costumes, pois ela não
reconhece o crime de que a acusas. Pensa que, se queimares o seu
corpo, nenhum dos teus barões estará mais em segurança em todo o
reino. Tristão escapou-se, conhece bem as planícies, os bosques, os
vaus, as passagens; como a sua ousadia é sem igual, matará, se os
conseguir surpreender, todos os teus homens que considerar
responsáveis pelo suplicio da rainha. Por certo que te poupará a ti
porque és seu tio, mas mais ninguém além de ti poderá responder pela
vida. O teu reino será posto a ferro e fogo, pois não deixará por vingar a
filha de rei que trouxe para ti da sua distante ilha.”
Guenelon, Gondoïne e Denoalen escutavam as palavras de Dinas
e tremiam de medo ao nome de Tristão. O senescal prosseguiu: “Sire,
servi-te toda a vida sem nada pedir em troca. Solicito hoje uma
recompensa: confia-me a rainha Isolda e coloca-a sob a minha
salvaguarda até ao dia que fixarás para o julgamento. Prometo conduzila
no dia marcado perante a tua corte.”
O rei pegou na mão de Dinas e levantou-o. Mas, longe de
satisfazer o seu pedido, jurou em voz alta: “Pelo apóstolo São Tomás,
pronta e inflexível justiça será feita e por nada deste mundo admitirei
perdão ou demora!” Dinas inclinou-se diante de Marcos. “Rei — disse —
, se é assim, regresso ao meu castelo de Lidan, pois nem por todo o
ouro do mundo assistiria ao suplicio da rainha!” Saltou para o corcel e
afastou-se, triste e sombrio, a cabeça baixa.
Isolda mantém-se em pé diante das chamas. As lágrimas
deslizam- lhe pela face. Traz um vestido de seda cinzenta; os cabelos,
em longas tranças, caem-lhe até aos pés. Meu Deus!, como os seus
braços estão estreitamente ligados! Quem a poderia ver tão bela sem se
apiedar? O povo, em redor, amaldiçoa o rei, amaldiçoa os traidores.
Encontrava-se no meio da multidão um bando de cerca de cem leprosos
que tinham vindo de Lancien, onde havia o leprosário. Cada um mais
hediondo que o outro, agitavam as matracas de madeira e coxeavam
nas muletas, empurrando-se e acotovelando-se para melhor gozarem o
espetáculo. A carne era esbranquiçada e corroída; sob as pálpebras
inchadas, os olhos sanguinolentos estavam dilatados pela espera. O
mais disforme de todos era o chefe do bando, e chamava-se Ivã. Com
uma voz rouca, gritou ao rei: “Sire, porque a tua mulher te enganou e
ridicularizou, queres destruir-lhe o corpo nesse braseiro. Concordo que
é justiça boa e direita, mas será demasiado breve! Este grande fogo cedo
a queimará e o vento não tardará a espalhar as cinzas. Quando a
chama da pira dentro em breve cair e se apagar, o seu sofrimento terá
acabado. Queres que te ensine um castigo pior, cem vezes mais longo e
cruel, de modo que ela continue a viver, mas uma vida tão miserável e
atroz que será pior que a morte? Assim a rainha lamentará todo o resto
da vida não ter perecido nesta fogueira; e tu serás ainda mais
respeitado.” “Por Deus, aceitarei deixar-lhe a vida, com a condição de
lhe ser doravante mais dura que a morte! Aquele que me indicar um
suplício tão cruel como dizes e do qual ninguém ainda ouviu falar,
ficarei grato e recompensá-lo-ei largamente. Fala, pois, se o conheces.”
“Rei — respondeu Ivã —, ficarás satisfeito quando me ouvires. Vê estes
companheiros que me cercam, com os membros disformes e a face
corroída pela lepra. Entrega-lhes Isolda, ser-nos-á comum e terá de se
submeter a todas as nossas vontades. Viverá dia e noite nas nossas
cabanas, comerá conosco das tigelas, dormirá nos nossos catres e
sofrerá o contato das nossas carnes corrompidas. Há em nós um tão
grande ardor, pois o mal atiça-nos o desejo, que não existe mulher no
mundo que consiga suportar as nossas relações carnais. Ao pé de ti,
vivia à larga, rica e honrada, adornada com jóias e vestidos guarnecidos
com peles de esquilo. Quando vir as nossas cabanas de teto baixo,
quando tiver de nos servir, partilhar a nossa cama, a orgulhosa Isolda
lamentará então a sua falta e até as chamas da fogueira.”
O rei refletiu um instante no que dissera o leproso, depois
levantou-se do trono e agarrou Isolda pelo braço para lha dar. “Piedade!
Piedade, senhor! — implorou a infeliz. — De preferência a entregar-me a
essa gente, atirai-me antes sem demora para a pira!”
Mas Marcos, impassível, entregou-a a Ivã, que, cheio de uma
diabólica alegria, apoderou-se dela sem perda de tempo e arrastou- a
para longe do braseiro, seguido por todos os companheiros.
O grupo esfarrapado cercava a infortunada soltando gritos
penetrantes: quem primeiro se aproximaria dela e lhe tocaria com a
mão? Já debatiam ruidosamente qual deles a possuiria primeiro e em
que ordem cada um a fruiria. O sinistro cortejo entrou pela estrada de
Lancien e aproximou-se do pequeno bosque onde Tristão estava
emboscado com Gorvenal. Quando o escudeiro viu avançar aquela
turba estridente e avistou a rainha entre eles, encheu-se de horror:
“Filho—diz a Tristão—, olha para ali, na estrada; vê Isolda no meio de
um bando de leprosos: arrastam-na à força. Será possível que o rei
Marcos a tenha abandonado a eles?”
Tristão esporeou o cavalo e saltou para a estrada; lançou-se, de
espada em riste, sobre Ivã: “Devasso — disse-lhe —, basta! Larga essa
mulher ou faço-te voar a cabeça com um golpe da minha espada.” Mas
Ivã desaperta o casaco: “Vamos, companheiros!, aos bastões!, às
muletas! É altura de dardes tudo por tudo!”
Era digno de ver os leprosos atirarem as capas de burel
esburacadas e remendadas, firmarem-se nos pés mal seguros,
resfolegarem, gritarem, brandirem as muletas. Tristão não teve
necessidade de bater-se com tal corja. Gorvenal cortara, num maciço,
um forte ramo de carvalho: assentou com ele tal golpe no crânio de Ivã
que o sangue negro jorrou em abundância. O miserável caiu ao solo e
os companheiros dispersaram-se aos berros.
Tristão apressou-se a desamarrar Isolda. Depois, sem perder um
instante, içou-a para a garupa do cavalo e, seguido por Gorvenal,
refugiou-se nas profundezas da floresta de Morois. Isolda, nos braços de
Tristão, depressa esqueceu os perigos daquele dia; de boa vontade se
teriam demorado, mas o prudente Gorvenal não quis fazer nenhuma
paragem antes do cair da noite. Para melhor escaparem às
perseguições, refugiaram-se no cimo de uma colina arborizada e
repousaram. Isolda pousou a cabeça no peito do amado e adormeceu.
XIX
OS AMANTES NA FLORESTA
EI-LOS na floresta de Morois; Isolda esqueceu todos os seus
pesares. Para subsistir nesta solidão, longe de qualquer habitação
humana, não têm outro recurso além da caça. Havia em Tristão um
maravilhoso arqueiro, mas não podia exercer a sua perícia, pois
faltavam-lhe o arco e as flechas. Gorvenal procurou tanto nos matagais
que encontrou a cabana de um florestal e roubou-lhe um arco de
alburno e duas flechas bem emplumadas e afiadas. Então Tristão põese
a trabalhar e a espreitar toda a espécie de caça. Vai-se pelos
bosques, vê um cabrito-montês, ajusta a flecha e atira: o animal é ferido
na ilharga, dá um salto e abate-se. Tristão carrega-o aos ombros e volta
para junto de Isolda. Enquanto um fogo de madeira seca flameja,
começa a construir uma cabana. Com a espada, corta e talha os ramos
e junca o solo com várias camadas de folhas. Isolda ajuda-o neste
trabalho; em seguida, neste fresco tapete de verdura, Tristão senta-se
singelamente com a rainha. Gorvenal, diante da choupana de ramadas,
leva achas ao braseiro e assa uma peça de caça à volta de um ramo de
aveleira. Assim sustentam a vida, mas o sal, o pão e o leite fazem-lhes
muita falta. A rainha sente-se subitamente cansada de todas as
provações que atravessou; o sono apodera-se dela e adormece, a cabeça
apoiada no braço de Tristão. Viveram assim muito tempo, com duro
frio, sol ardente, chuva e vento, na profunda floresta.
Tristão deixara em Tintagel um belo cão de corrida, ligeiro e vivo,
que atendia pelo nome de Husdent. O rei mandara-o fechar numa sala
do torreão, mas ele não queria comer nem pão, nem papa, nada do que
lhe davam; latia e raspava com a pata, os olhos lacrimejantes, de tal
modo que as pessoas se apiedaram: “Pobre Husdent! Nunca mais
encontraremos um cão de caça como este, tão vivo e que manifeste tal
dor pelo dono! Salomão disse com justa razão que o seu amigo era o
galgo: temos a prova em ti, pois não queres tocar em comida desde que
o teu dono desapareceu!” “Creio que ele enlanguesce por causa do
dono” — disse Marcos. Vendo que o rei estava comovido, um dos fiéis
disse-lhe: “Sire, mandai-o soltar, senão enraivece e era uma pena num
animal tão belo e fiel. Quando estiver em liberdade, veremos se é pelo
dono que geme.”
Marcos aceitou este conselho e mandou um escudeiro desprender
o cão. Todos os assistentes se foram instalar em bancos ou assentos
elevados, pois queriam evitar as mordeduras do cão, no caso de estar
raivoso. Mas Husdent não tinha a menor intenção de lhes fazer mal:
apenas se sentiu solto, desatou a correr em todos os sentidos e não
perdeu mais tempo. Transpôs a porta da sala e dirigiu-se para a
habitação onde costumava encontrar Tristão. O rei e os outros seguemno.
Não encontrando o dono, o cão gane, late muitas vezes e manifesta
uma grande dor; dá várias voltas farejando o chão e encontra o rasto de
Tristão. De todos os passos que o bravo fizera quando foi preso e devia
ser queimado não há um único que o cão não faça. O faro condu-lo à
masmorra onde Tristão foi encarcerado e depois à capela donde saltou
para a falésia. Ai, Husdent salta para o altar ladrando e atira-se pelo
vitral como o dono fizera. Magoou-se na perna ao cair no patamar, mas
não pára; segue a pista pelo areal e só se detém na orla florida do
bosque onde Tristão se emboscara; em seguida, entranha-se no matagal
sob as grandes árvores. Os barões dizem ao rei: “Deixemo-lo agora, pois
poderia conduzir-nos a locais secretos donde seria difícil regressar.”
Husdent corre sob a ramagem e esta ecoa tão fortemente os seus
latidos que o barulho chega aos ouvidos de Tristão. O bravo levanta-se e
grita a Gorvenal: “Escuta, é Husdent que vem ai! Certamente que o rei
vem com ele!” Tristão pega no arco e estica- o. Mas o cão desemboca
sozinho das moitas; imaginem as caricias que fez a Tristão: abana a
cabeça, agita a cauda, lambe-lhe as mãos e rola a seus pés — para
todos uma grande satisfação. Do dono, voa até Isolda, depois para
Gorvenal e mesmo para os dois cavalos. Mas sempre, em Morois, à
alegria se mistura a inquietação: “Ah, Deus—diz Tristão—, por que
infelicidade me soube Husdent encontrar? Que fazer neste bosque de
um cão tão barulhento? Os seus latidos trair-nos-ão e a gente do rei
prendernos-á. Mais vale matá-lo antes que os seus latidos nos
descubram. Fará a nossa infelicidade... Mas no entanto não o posso
matar pela sua demasiada fidelidade!” Isolda segura Husdent e
mantém-no ao pés de si: “Piedade para ele!—pede.—Se o cão ladra ao
perseguir a caça, é tanto por adestramento como por natureza. Ouvi
outrora dizer que um florestal galês possuía um galgo: ensinara-o tão
bem que seguia o veado magoado a saltar, mas sem nunca ladrar nem
fazer barulho. Amigo Tristão, seria uma grande alegria se
conseguíssemos, à custa de algum esforço, que Husdent abandonasse o
latido.” Tristão ficou imóvel e refletiu; apiedou- se do animal e disse:
“Bela, falaste verdade: gastarei a minha aplicação e paciência a fazê-lo
agarrar a caça sem latir.”
Tristão vai caçar ao arco na floresta. Era hábil; atira uma flecha a
um gamo: o sangue corre, o cão late, o gamo ferido foge aos saltos,
Husdent ladra muito alto. Tristão bate-lhe com força. O cão pára ao pé
do dono, cessa de latir, abandona a perseguição; levanta a cabeça para
fitar Tristão, não sabe que fazer, não ousa latir, perde a pista. Tristão
mete o cão entre as pernas, com pequenas pauladas no solo indica-lhe
a pista; Husdent quer latir novamente; Tristão está disposto a instruilo.
Antes de o primeiro mês ter acabado, o cão estava perfeitamente
adestrado a caçar em silêncio: na erva, como na neve ou no gelo, nunca
abandona a caça, por mais rápida e ardente que seja. Agora o cão Lhes
é de grande auxilio, presta-lhes serviços sem preço. Se apanha no
bosque um cabrito-montês ou um gamo, dissimula-o cuidadosamente,
cobrindo-o com rama, e se o agarra no meio da charneca, amontoa erva
sobre o corpo do animal, vai buscar o dono e o conduz até à presa.
Tristão viveu com Isolda dois anos na floresta; aí sofreram muitas
aflições e medos. Durante os primeiros meses, não ousavam ficar nunca
no mesmo lugar: onde acordavam nunca mais adormeciam. Sabiam
muito bem que o rei os procurava e perseguia. O pão e o sal faziam-lhes
muita falta: viviam unicamente de bagas selvagens e da carne dos
animais que Tristão matava. Não é para admirar que o rosto mude de
cor, que as roupas se gastem e rasguem nas silvas e espinheiros.
Sofrem igualmente os dois, pois cada um sente as dores do outro. A
bela Isolda tem muito medo que Tristão se arrependa; por seu lado,
Tristão teme que a amante esteja ressentida contra ele e lamente a
loucura cometida.
Foi assim que os fugitivos dissimularam-se e desapareceram no
silêncio do bosque cerrado. Haviam-lhes perdido o rasto e os traidores
nada mais podiam contra eles. Desde que Tristão vadiava livremente,
sentiam a vida ameaçada. Mais uma vez o maldito anão ofereceu-se
para ajudá-los, mas foi para sua infelicidade. Os barões inquietavam-se
porque notavam que ele tinha com o rei conciliábulos dos quais eram
excluídos. As suas perguntas inquietas, respondia com palavras dúbias,
como se guardasse um segredo. Todavia, num dia em que o
surpreenderam embriagado, atormentaram-no tanto que conseguiram
fazê-lo falar: “Possuo — disse — um segredo que não posso trair sem
perjurar em relação ao rei. Mas como sois meus amigos, não vos devo
esconder nada. Sabereis tudo se me acompanhardes ao Vau
Aventuroso; ai se encontra um fosso que abriga uma moita de
pilriteiros. O segredo que prometi ao rei não confiar a nenhum ouvido
humano, confiei-o, para melhor o enterrar, ao fosso profundo, mas ele
chegou à moita de pilriteiros que domina o buraco: quando sopra o
vento, o pilriteiro, ao ressoar, murmura o segredo que recolheu.”
Os barões foram até lá com Frocin, que desapareceu no buraco
até aos ombros. Os outros olhavam, pasmados, e não ouviam nada. De
repente, levantou-se uma brisa que sacudiu a moita de pilriteiros; o
ruído das folhas levou até aos barões, com um ligeiro murmúrio, esta
confidência: “O rei Marcos tem orelhas de cavalo.” Algum tempo depois,
ao saírem de um festim, os barões, animados com o vinho, disseram em
tom de brincadeira: “Rei, sabemos o que nos escondes.” “Que vos
escondo, então?” Um dos barões aproximou-se dele e sussurrou “O rei
Marcos tem orelhas de cavalo!” “Por Deus—respondeu Marcos
rebentando a rir —, é verdade que tenho orelhas de cavalo! Guardei o
segredo até estes últimos tempos, mas foi descoberto contra minha
vontade pelos artifícios de um bruxo maldito, esse execrável anão que
não sabe estar calado. Quero acabar com ele. “Mal avistou o anão,
Marcos desembainhou a espada e cortou-lhe a cabeça rente à corcunda:
muitas pessoas se regozijaram com isso por causa do mal que causara
a Tristão e a Isolda — os amantes tinham um inimigo a menos.
XX
O IMPOSSÍVEL ARREPENDIMENTO
FOI-SE o verão, chegou o inverno. Os amantes viviam escondidos
na cavidade de um rochedo e, por vezes, no solo endurecido pelo gelo, o
frio polvilhava de geada o leito de folhas secas. Pelo poder do seu amor,
nem um nem outro sentiam a miséria. Mas quando voltou o tempo
claro, ergueram sob as grandes árvores a cabana de ramos
reverdecidos. Tristão conhecia, desde a infância, a arte de imitar o
canto dos pássaros dos bosques; imitava perfeitamente o verdelhão, o
chapim, o rouxinol e toda a raça alada. Por vezes, nos ramos da cabana,
vindos ao seu apelo, numerosos pássaros, de pescoço dilatado,
cantavam os seus lais à luz do dia. Os amantes já não fugiam pela
floresta, errando sem cessar, pois nenhum barão se arriscava a
persegui-los Um dia. todavia, um dos quatro traidores, que Deus o
amaldiçoe, arrastado pelo ardor da caça, ousou aventurar-se nas
paragens de Morois: era Guenelon, rico homem e de grande fama,
amante de fazer correr a matilha.
Nesse dia. Gorvenal estava à beira de um rio, perto da nascente.
Tirara a sela ao cavalo para deixá-lo pastar a erva nova. Subitamente,
de um pequeno bosque vizinho, surgiram cães que caçavam a grande
velocidade: era a matilha de Guenelon que passava. Gorvenal pôs à
pressa a sela no cavalo, emboscou-se perto da senda e viu acorrer a
galope aquele que mais odiava o seu senhor, sozinho e sem escudeiro. O
malvado barão esporeava tanto O cavalo e tantas vezes lhe batia com o
punho no pescoço que o animal embicou num rochedo e caiu. Gorvenal,
encostado a uma árvore, espiava aquele que chegara tão depressa e
nunca mais voltaria — o destino não tem retorno. Os cães perseguem o
veado, os lacaios vão atrás dos cães e o senhor desata aos palavrões,
irritado com a queda que o atrasou. Quando passa à altura de
Gorvenal, o fiel servidor sai do abrigo, rememora todo o mal que
Guenelon fez ao seu senhor e, com um golpe de espada, corta-lhe a
cabeça. Em seguida, pega nela, prende-a à sela do cavalo e regressa ao
refúgio de Tristão.
O bravo repousava na cabana, depois das andanças da noite.
Dormia na juncada, estreitando contra si a rainha, por quem sentia
tanta aflição e confusão. Que alegria não será a sua, quando souber que
aquele que desejava tão ardentemente matá-lo perdeu a vida! Gorvenal
chega diante da choupana de folhagem, segurando pelos cabelos a
cabeça do traidor, suspende-a na alta forquilha erguida no centro da
cabana, o rosto voltado para o chão. Tristão acorda com o barulho, olha
para cima e avista na sombra o rosto do inimigo, cujos olhos parecem
fixá-lo; pega na espada que pousara ao pé de si e levanta-se de um
salto. O escudeiro diz-lhe então em voz alta e forte: “Não te mexas,
podes dormir tranqüilo. Mesmo a cabeça de Guenelon, mas já a cortei:
já te fizera bastante mal!” Tristão fica muito contente com o que ouve;
aquele que mais temia morreu. Espalha-se pela Cornualha a nova de
que os monteiros de Guenelon, tendo voltado atrás, encontraram o seu
senhor decapitado: todos estão aterrados, ninguém mais ousa ir caçar
na floresta.
Para escapar mais seguramente aos grandes perigos que corriam,
Tristão fez um arco de madeira robusta e flexível e ajustou-o tão
habilmente que nunca errava, e matava tudo o que visava; por isso
chamou-o “o arco que não falha”. No dia em que se muniu desta arma,
arriscou-se a fazer incursões em locais mais afastados do refúgio. Uma
bela manhã em que os amantes percorriam os grandes bosques em
busca de ervas e raízes, chegaram por acaso ao oratório de um velho
eremita chamado irmão Ogrin. Ao sol, debaixo de um bosquezinho de
áceres, perto da capela, o santo homem, apoiado no bastão, caminhava
em passos miudinhos. “Senhor Tristão — exclamou —, não sabeis que o
rei mandou proclamar um pregão por todas as paróquias do reino?
Quem quer que se apodere de vós, por força ou astúcia, e vos entregar
receberá cem denários de ouro fino como recompensa, e todos os barões
juraram entregar-vos, morto ou vivo. Arrependei-vos, Tristão, pois Deus
perdoa sempre ao pecador que se arrepende.” “Arrepender-me, senhor
Ogrin? E de que crime? Vós, que nos julgais com tanta segurança,
sabeis ao menos que filtro mágico, que vinho ervoso bebemos ambos no
mar? Sim, o licor encantado embriaga-nos e eu prefiro errar toda a vida
nestes lugares selvagens com Isolda e viver de ervas e raízes a possuir,
sem ela, todos os tesouros do rei Otran.” “Senhor Tristão, Deus vos
ajude, pois perdestes este mundo e o outro. Nada vos salvará da
maldição que pesa sobre vós. Aquele que trai o seu senhor é
esquartejado por dois cavalos, queimado na pira e onde a sua cinza cai
não nasce mais erva e a lavra é inútil; ai, as árvores e a verdura
murcham. Tristão, conjuro-vos, pela salvação da vossa alma, entregai a
rainha àquele com quem casou segundo a lei de Roma.” “Irmão Ogrin,
sabei que já não lhe pertence, pois ele abandonou-a vergonhosamente e
entregou-a ao bando de leprosos; foi aos leprosos que a conquistei.
Doravante, é minha; não me posso separar dela, nem ela de mim.”
Nessa noite, o eremita acolheu os dois amantes debaixo do seu
teto; por caridade, violou uma vez a sua regra de vida, que lhe proibia
receber qualquer mulher. De manhãzinha, levantaram-se; o eremita
rezou por eles e abençoou-os. Isolda chorava, prosternada aos pés do
homem que sofre por Deus. O eremita, para convencê-la, citava-lhe
palavras do Livro Santo; mas ela, desfeita em lagrimas, abanava a
cabeça e recusava-se a acreditar: “Irmão — dizia —, só amo Tristão e ele
só me ama pela força da bebida mágica que ambos tomamos por
engano e que nos obriga a amarmo-nos. Está fora do nosso poder
renunciar a este amor.” “Meu Deus! — exclama Ogrin. — Que reconforto
se pode dar a mortos? Arrependei-vos, pois aquele que vive em pecado
sem arrependimento é um morto.” “Não — continuou Tristão com força
—, não sou um morto, pois vivo e não me arrependo. Irmão Ogrin,
vamos voltar para a floresta que nos protege e guarda. Vem, Isolda, meu
amor!” Isolda levantou-se; deram-se as mãos e, quando entraram nas
altas ervas e na urze, as árvores fecharam sobre eles a folhagem.
XXI
A CLEMENCIA DO REI MARCOS
DOIS ANOS haviam passado desde que os amantes se refugiaram
com Gorvenal na floresta de Morois: já ai haviam habitado dois verões e
dois invernos e viam chegar a estação quente pela terceira vez. No fundo
dos bosques, longe de qualquer local habitado, Tristão e sua amada
viviam como animais acossados. Além de frutas selvagens, ervas e
raízes, só comiam a carne dos animais mortos na caça; fazia-lhes falta o
sabor do sal. Na cabana de folhagem onde voltavam sempre depois das
caminhadas, o pobre mobiliário não passava de alguns vasos de barro
que Gorvenal trocara com florestais por peças de caça. Iam buscar a
água a uma fonte bastante próxima, que Tristão descobrira entre as
silvas, no decurso de uma caçada. Sempre fiel e laborioso, Gorvenal
entrançara alguns cestos de junco e os fugitivos empregavam-nos na
colheita das frutas e bagas que tinham de procurar durante horas
debaixo das grandes árvores e ao longo das veredas. Isolda ficava
sozinha todo o dia. enquanto os dois homens iam à caça ou à procura
de um alimento frugal. A rainha depressa renovava a juncada debaixo
da choupana de ramagem: o resto do tempo, ficava solitária, à espera
do regresso do amante. Tão áspera e dura era a vida dos desterrados
que a sua magreza era extrema e os corpos haviam enfraquecido:
quanto mais o tempo passava, mais esta vida de indigência e provação
lhes pesava e mais prontos estavam a sentir a fadiga. As roupas, que
não cessaram de trazer durante tantos meses, estavam gastas e caiam
aos farrapos, a tal ponto rasgadas pelas silvas que os três
companheiros a custo se defendiam contra as intempéries e a frescura
das noites. Só a força do sortilégio impedia os amantes de se apiedarem
da sua sorte e lamentarem a sua existência passada.
Era pouco depois do Pentecostes; o sol estava abrasador, e o calor
opressivo desde as primeiras horas do dia. Gorvenal já partira para a
caça e o cão Husdent acompanhara-o. Tristão saiu da cabana, cingiu a
espada, pegou no “arco que não falha” e, sozinho, foi caçar pelos
bosques. A sorte não lhe sorriu nesse dia: levantou primeiro uma corça,
depois um veado e, durante horas e horas, extenuou-se a persegui-los
sem nunca os ter ao alcance das flechas. Parecia-lhe que os membros
emagrecidos estavam como que entorpecidos e traiam o seu ardor na
perseguição da caça. Na hora em que o calor pesava mais, o bravo
sentiu-se dominado pela fadiga e, pela primeira vez, renunciou a
continuar a caçada. Abandonou a pista e regressou a passos lentos à
choupana de folhagem onde Isolda o esperava. A rainha adormecera. O
rangido seco dos raminhos sob os pés de Tristão acordou-a. Levantouse,
veio ao seu encontro e disse-lhe, os olhos ainda meio fechados pelo
torpor: “Belo amigo, há tanto tempo que me deixaste!” “Encarnicei-me a
perseguir uma corça, depois um veado, e não cacei nem um nem outro;
morro de lassidão e só desejo estender-me e dormir.”
Mal entrou, Tristão deitou-se no chão juncado de verdes ramos e,
com um gesto cheio de senso, pousou diante de si, ao longo do corpo, a
espada nua que trazia na mão. Sentia tal necessidade de repouso que
não se deu ao trabalho de se despir: conservou os longos calções e uma
túnica curta, apertada na cintura com um cinto. Isolda estendeu-se
também à sua frente, do outro lado da espada, o rosto voltado para
Tristão, sem que todavia os seus lábios se aflorassem. Trazia uma
túnica usada e esburacada, que vestira sobre uma longa camisa
branca. O dedo estava ornado com um anel de ouro, engastado com
uma esmeralda, que Marcos lhe dera no dia do casamento. Nesse dia.
tivera alguma dificuldade em colocá-lo, mas hoje o dedo tornara-se tão
delgado que o anel corria o risco de escorregar a cada instante. Tristão
estendera os dois braços para o rosto da amiga: a mão esquerda,
colocada sob a cabeça de Isolda, mergulhava na trunfa dos seus
cabelos; a direita repousava na curva delicada do pescoço. Os dois
corpos, embora próximos, não se tocavam e o aço frio da espada
brilhava entre eles. Não tardaram a mergulhar no sono, os dois corpos
estendidos frente a frente, imóveis e belos como estátuas. Pela primeira
vez desde que haviam entrado na floresta de Morois, repousaram juntos
sem obedecerem à força do desejo.
Lá fora, o sol estava mais ardente que nunca: nem uma aragem,
nem uma folha se mexe. Aconteceu de um florestal do rei passar por ali.
Debaixo de uma árvore, notou que a erva fora pisada recentemente e
conservava o vestígio de dois corpos: os amantes haviam ai repousado
na véspera. O homem ouvira proclamar o pregão do rei: sabia que uma
grande soma de ouro seria entregue a quem descobrisse o retiro dos
fugitivos. A isca do ganho levou-o a procurar o refúgio dos amantes:
meteu-se pelo matagal e, seguindo na erva as pegadas, atingiu o seu
novo pouso. Pela porta aberta da cabana avistou-os dormindo
estendidos frente a frente no leito de folhagem, e reconheceu-os; mas o
pavor apoderou-se dele ao pensar que Tristão poderia acordar e
maltratá-lo. Afastou-se, recuando, na ponta dos pés e, quando chegou a
uma distancia razoável, desatou a correr e transpôs as duas léguas que
o separavam de Tintagel.
No salão, o rei reunia o tribunal, cercado pelos barões. O florestal
subiu os degraus da escadaria e irrompeu pela sala, completamente
esbaforido. Ao vê-lo, Marcos exclamou: “Que novas me trazes para
entrares assim sem pedir permissão? Resfolegas como um monteiro que
andou a correr atrás dos cães! Contra quem vens apresentar queixa?
Fala! Expõe o teu pedido!” O florestal aproximou-se do rei e segredoulhe
ao ouvido: “Escuta-me, rei, por favor. Proclamaram por este pais
que aquele que encontrasse o teu sobrinho com a rainha deveria, sob
pena de morte, informar-te sem demora. Pois bem, descobri-os! Por
certo, tive imenso medo quando os vi, pois as flechas de Tristão nunca
falham o alvo mas temo o teu furor. Se quiseres, levo-te onde eles
dormem: que eu morra se não disse a verdade!” Marcos ficou vermelho
de emoção e de cólera: “Diz-me, monteiro — perguntou baixinho —,
onde os encontraste?” “Numa cabana da floresta de Morois, a duas boas
léguas daqui. Vi-os adormecidos um ao pé do outro. Vem sem tardar e
castiga os autores da tua vergonha. Se não tiras severa vingança, não
tens mais direito a governar o teu reino.” O rei disse-lhe: “Se tens amor
à vida, livra-te de revelar a quem quer que seja o que acabas de me
contar. Vai e espera por mim na Cruz Vermelha que se eleva ao longo
do caminho à entrada do cemitério; não me demoro nada. Terás todo o
ouro e toda a prata que quiseres!” O monteiro deixa o rei, vai até o lugar
marcado e senta-se no pedestal.
Tendo saído o homem, o rei chama os fiéis e diz-lhes: “Acabo de
saber uma coisa da qual me quero eu próprio certificar. Vou, pois,
deixar-vos aqui durante uma hora ou duas. Que nenhum de vós tenha
a ousadia de me seguir para ver onde vou!” Todos se fitam,
boquiabertos, e vários perguntam: “Rei, falais a sério? Já alguma vez
vos viram viajar sem escolta?”
Marcos, que não desejava que eles testemunhassem sua desonra,
replicou: “Não recebi nenhuma notícia importante, mas uma donzela
marcou-me encontro pedindo-me segredo: desejo ir lá, sem escudeiro
nem companheiro, sozinho com o meu corcel.”
O rei cinge a espada, monta a cavalo e dirige-se para a Cruz
Vermelha Enquanto cavalga, traz à memória a traição de Tristão e como
lhe roubou a linda Isolda. Jura que, se os encontra deitados juntos,
Lhes fará pagar o preço da vergonha trespassando-os com a espada. Na
Cruz Vermelha, esperava-o o monteiro.
“Conduz-me o mais depressa possível à cabana onde os
surpreendeste.”
Entraram na floresta. O espião ia à frente; o rei seguia-o
apertando a espada na mão direita. Finalmente, o florestal murmurou:
“Rei, estamos perto.”
Pegou nas rédeas do cavalo do rei, segurou no estribo enquanto
ele se apeava e atou o animal ao tronco de uma macieira selvagem.
Avançaram silenciosamente para a cabana florida que avistavam diante
deles. Antes de entrar, o rei desapertou o casaco; tinha assim o braço
livre para manejar a espada, persuadido de que logo a empregaria na
vingança. Por duas vezes jurou a meia-voz: “Que eu morra se os não
matar!” Ordenou ao florestal que se afastasse e o esperasse perto do
cavalo, depois avançou até ao leito de folhas, a espada erguida, e
observou-os um instante, imóveis a dormir. Vai matá-los? Mas eis que o
braço trêmulo de cólera cai lentamente; viu que os lábios não se
tocavam, que haviam conservado as roupas e que os corpos estavam
separados pela espada desembainhada de Tristão, a mesma que se
fendera não há muito no crânio do Morholt. “Deus — disse para consigo
mesmo —, que vejo aqui? Tenho o direito de matá-los? Há dois anos
que vivem juntos neste bosque; se se amassem loucamente, dormiriam
vestidos? Teriam colocado entre eles esta espada nua? Os mais sábios
clérigos ensinam-nos que uma espada desembainhada entre dois
corpos é guardiã e garantia de castidade. Não vejo os seus lábios
desunidos? Não, não os matarei; seria um grande pecado matá-los
quando repousam sem defesa. E se os acordasse, quem sabe se Tristão,
bruscamente tirado do sono, não dirigiria contra mim a espada? Um de
nós poderia ser morto. Isso seria comentado durante muito tempo neste
país e não traria honra a ninguém. Mas vou fazer de modo que, quando
despertarem, saibam com toda a certeza que os descobri adormecidos
nesta choupana; saberão que os poderia matar se quisesse e que me
apiedei destes, concedendo- lhes o meu perdão e clemência.”
O rei sente a cólera acalmar pouco a pouco; deseja do fundo do
coração reconciliar-se com a mulher e o sobrinho. Então, retira
docemente do dedo emagrecido da rainha o anel de ouro, engastado
com uma esmeralda, que lhe dera pelo casamento; introduz em seu
lugar, sem que ela sinta, o anel com que Isolda o presenteara. “Possa
ela compreender que, por esta troca de anéis, lhe guardo a minha fé e o
meu amor como no primeiro dia da nossa boda!” Depois, inclinando-se
de novo, ergue lentamente pelo botão do punho a espada de Tristão que
jazia entre os dois corpos e coloca aí a sua.
“Querido sobrinho, pela troca que faço das nossas espadas,
devolvo-te a minha confiança e amizade como no dia cm que te armei
cavaleiro quando te preparavas para defrontar o Morholt.”
No momento em que saía da cabana, Marcos viu um buraco na
sebe de folhas e ramos que formavam o teto; um quente raio penetrava
por aquela estreita abertura e vinha iluminar o rosto da rainha, que
resplandecia na penumbra.
Pegou nas luvas reais, ornadas de arminho, e dispô-las na
folhagem para defendê-la do ardor do sol. “Que estas luvas, símbolo do
poder real, vos sejam penhor, bela Isolda, de que vos tomo como ainda
não há muito sob a minha proteção e salvaguarda!”
Uma vez longe da cabana, Marcos desamarrou o cavalo, saltou
para a sela e, como o florestal se admirou por vê-lo renunciar tão
facilmente à vingança, disse-lhe: “Patife! Desde quando tenho de te
prestar contas? Foge para longe e salva o corpo se conseguires!”
Quando Marcos regressou a Tintagel, os seus homens perguntaram-lhe
onde estivera durante tanto tempo. Mentiu o melhor que pôde: ninguém
soube nunca onde nem a que fora. Quanto a ele, regozijava-se
secretamente de poder acreditar de novo que a mulher e o sobrinho não
o enganavam; agradava-lhe, para melhor se convencer da sua
inocência, tomar as aparências pela realidade e um símbolo por uma
prova. A sua natureza levava-o a preferir o perdão e apaziguamento à
dureza e à violência.
Entretanto os amantes continuavam a dormir e Isolda sonhava.
Parecia-lhe estar numa grande floresta, debaixo de um rico pavilhão;
leões esfomeados precipitavam-se sobre ela, mas, no último momento,
em vez de a devorarem, cada um deles colocava a pata direita sobre a
cabeça da rainha como que para tomarem posse da sua pessoa. Isolda
solta um grito de pavor e acorda; com os movimentos que faz, as luvas
ornadas de arminho caem-lhe no peito. Tristão ouve o grito, ergue-se
bruscamente e quer pegar na espada: vê então estupefato que a lâmina
não está fendida e, pelo botão do punho em ouro cinzelado, reconhece a
espada do rei. No mesmo instante, a rainha nota no dedo o anel que
Marcos aí introduzira. Empalidece e exclama: “Que Deus nos ajude! O
rei descobriu-nos! Vê, meu querido, retirou o anel do meu dedo e pôs o
dele em seu lugar!” Tristão replica: “Levou a minha espada e deixou-me
a sua; sem dúvida que me quis dar a conhecer que estive à sua mercê
enquanto dormia. Quis dar a entender que estamos em seu poder e à
sua discrição; por isso depôs as luvas na folhagem da cabana.”
Entrementes, Gorvenal entrou na cabana e, vendo-os tão pálidos
e desamparados, inquietou-se: “Que tendes? Que vos atormenta?” “O
rei encontrou-nos aqui enquanto dormíamos. Poupou-nos, não sei por
que, mas deixou a sua espada em lugar da minha e meteu o seu anel
no dedo da rainha; além disso, colocou as luvas ornadas de arminho na
folhagem da cabana. Que quer isto dizer, que devemos pensar? É agora
mais do que nunca que temos necessidade dos teus conselhos e da tua
sabedoria.
Gorvenal respondeu: “Temo que, por meio de trocas singulares, o
rei tenha procurado iludir-vos. Quem sabe se não quis sossegar-vos
com uma fingida benevolência, enquanto ia a toda a pressa reunir os
homens de armas para melhor vos apanhar? Na minha opinião, não
tendes outro recurso senão a fuga. Não tenho melhor conselho a darvos.
Na dúvida em que estais das verdadeiras intenções do rei, o melhor
é pôr uma grande distancia entre ele e vós. Depois será o momento de
refletir no que vos convém fazer.”
Os amantes, com Gorvenal, dirigem-se por sendas perdidas para
a terra de Gales, nos extremos confins da floresta de Morois. O medo
traça-lhes longas etapas sem repouso nem sono. Quantas torturas o
Amor não Lhes causou!
XXII
O FIM DO SORTILEGIO
A VIRTUDE do filtro só devia durar três anos; assim o quisera a
mãe de Isolda quando o preparou. O termo chegou como estava fixado:
foi alguns dias depois de o rei Marcos ter surpreendido os amantes
adormecidos na cabana de folhagem. Nesse dia. Tristão levantara-se de
manhãzinha, sem acordar Isolda. Partiu para a caça como
habitualmente, mas a tarde caiu sem que tivesse abatido sequer um
animal. Em pé debaixo de um carvalho, no flanco de um outeiro,
surpreendeu-se a pensar com o olhar voltado para longe, para o pais de
Gales. Ao cair da noite, acenderam-se fogos a distância, uns após
outros, no cimo das colinas: os galeses festejavam o São João. Fora
nesse mesmo dia. o mais longo do ano, que, três anos atrás, na nau que
o trazia da Irlanda com Isolda, haviam bebido a fatal beberagem. Então,
sentiu-se bruscamente liberto da ação do sortilégio e novos pensares
lhe vieram ao espírito:
“Não, não foi por medo nem por manha que o rei nos poupou.
Apoderara-se da minha espada, eu dormia, estava à sua mercê: podia
ter-me eliminado, para que reforços? E se me quisesse apanhar vivo,
por que, tendo-me desarmado, me teria deixado a sua própria espada?
Ah, reconheço-te nisso, querido tio: não por manha, mas sim por
piedade nos quiseste perdoar. Perdoar-nos? Não, não tens nada a
perdoar, entreviste confusamente a verdade. Adivinhaste que nunca tive
vontade de te ofender: estava dominado por uma força da qual não era
senhor. Lembraste-te que, desde que me havias condenado à fogueira,
eu não reconhecera o meu erro, mas inutilmente reclamara julgamento
por meio de batalha; e a nobreza do teu coração inclinou-te a
compreender coisas de que nem sequer suspeitavas. Não que saibas
nem jamais possas saber a verdade da bebida mágica, mas duvidas,
esperas, sentes que eu não menti. Ah, querido tio, como me seria doce
fazer as pazes contigo, voltar a vestir ainda ao teu serviço o lorigão e o
elmo. Não há muito, perseguido, podia levantar-me contra ti, pois
abandonaras Isolda aos leprosos; não era mais tua, era minha. Eis que
pela tua piedade e clemência me tiraste o direito de te disputar a rainha
e de ficar com ela. A rainha? Neste bosque, vive como uma serva. Que
fiz da sua juventude? Em lugar do quarto forrado a seda, dei-lhe uma
cabana na floresta selvagem, e é por mim que ela vive esta rude vida. Ao
Senhor Deus, Rei do mundo, peço perdão e suplico-lhe que me dê força
para devolver Isolda ao rei Marcos.
A noite tornava-se mais profunda. No matagal cercado de silvas
que há três dias lhe servia de abrigo, a loura Isolda aguardava o
regresso de Tristão. Um raio de lua fez brilhar no dedo o anel de ouro
que Marcos lhe enfiara. Pensou: “Aquele que por cortesia meteu este
anel de ouro no meu dedo durante o meu sono será o mesmo homem
que, levado pela cólera, me entregou aos leprosos? Não, é o soberano
cheio de indulgência que desde o dia em que abordei a sua terra me
acolheu e protegeu. Mas eu vim e causei, sem querer, a inimizade que
ergue agora o rei Marcos contra Tristão. Tristão não deveria viver no
palácio do rei, com cem donzelas à sua volta? Por mim renunciou a
exercer o seu valor: exilado da corte, perseguido neste bosque, leva uma
existência miserável. Será, pois, para me agradar, constrangido a
passar o resto da vida no meio de privações e na obscuridade? Não
tenho o direito de exigir dele um tal sacrifício.”
Ouviu então os passos de Tristão aproximarem-se. Foi ao seu
encontro, como de costume, para lhe tirar as armas. Tirou-lhe das mãos
o “arco que não falha” e as flechas e desatou as presilhas da espada.
“Querida — disse Tristão —, é a espada de Marcos. Devia degolar-nos,
mas poupou-nos.” Isolda pegou na espada e contemplou as pedras
preciosas que decoravam o botão do punho em ouro. “Bela — disse
Tristão —, se pudesse chegar a um acordo com o rei! Se ao menos ele
me permitisse defender em batalha que nunca, por minha vontade, em
palavras ou em atos, te amei com um amor ultrajante para ele! Então,
qualquer homem do seu reino, desde Lidan a Durham, que me ousasse
contradizer, encontrar-me-ia pronto a vencê-lo em campo fechado. Uma
vez justificado por este combate, se o rei me quisesse conservar em sua
casa, voltaríamos juntos para a corte e servi-lo-ia com grande honra,
como meu senhor e tio. Se preferisse afastar-me guardando-te ao pé
dele, iria para a Frísia ou para a Bretanha armórica com Gorvenal por
único companheiro. Num ou noutro caso, rainha, sempre te pertenceria
e ficaria teu. Pode espantar-te que eu pense nesta separação, mas a
idéia nunca me teria acorrido se não fosse a dura miséria que suportas
por minha causa desde há tanto tempo, bela, nesta terra deserta!”
Isolda refletiu durante um certo tempo, depois replicou: “Há dois anos
que erramos por esta floresta e suportamos sem nos queixarmos as
privações, o calor e o frio. Todavia, nunca até hoje me falaste assim. Por
que pensas agora, pela primeira vez, em separar-te de mim e devolverme
ao rei Marcos?” “Doce amor, Deus é testemunha que o meu amor
por ti é tão forte como antes, mas, não to quero esconder, hoje é dia de
São João e vi os fogos de alegria acenderem-se no cimo das colinas do
pais de Gales: ainda ardem neste momento. Fitando de longe as chamas
subirem na noite, lembrei-me que três anos haviam decorrido, dia a dia.
desde que tu e eu bebemos o filtro do amor. Sabes que a rainha da
Irlanda, tua mãe, o fabricara, por artes de magia, e sabes também da
sua duração. Não há no mundo feiticeira igual, e ela não se enganou
nos cálculos. Tive bruscamente o sentimento de que a força do vinho
ervoso cessara de nos dominar; sinto que já se desvaneceu neste
instante. Senão, como poderia conceber a idéia de te entregar ao rei
Marcos? Como, se o filtro ainda te possuísse, poderias suportar ouvirme
propor esta separação? Só este pensamento nos seria outrora
insuportável a ambos.” “Falas a verdade, querido Tristão. Sinto como tu
que o sortilégio chegou ao fim. O nosso amor continua, como dizes,
mais forte que nunca, mas cessou de ser uma coação mágica, uma
força exterior, invencível e fatal. Vamos amar-nos agora como os outros
homens e as outras mulheres desde que o mundo é mundo; eis-nos
restituídos à condição comum de todos os mortais. Doravante
estaremos sujeitos aos caprichos do destino, à flutuação dos nossos
desejos, a todos os movimentos contrários, a todos os remorsos das
nossas vontades. Daí vem que a esta hora, sem cessarmos de nos amar,
estejamos a conceber o projeto de nos separarmos.” Tristão fitou-a
longamente com ternura, depois acrescentou: “Compreendeste como eu,
bela amiga, que a nossa vida ia mudar. A partir de agora, não seremos
mais conduzidos contra vontade pela força do sortilégio; temos de ser
nós a decidir a nossa sorte. Que homem será suficientemente sábio
para nos aconselhar em tal confusão?” “Tristão, lembra-te do eremita
Ogrin, que visitamos não há muito na sua mata. Vamos ter com ele, e
que possamos receber, na incerteza em que nos encontramos, um
conselho inspirado por Deus!” “Não poderíamos fazer melhor” —
respondeu Tristão. Renunciando de comum acordo a dormir nessa
noite, acordaram Gorvenal O escudeiro precedia-os para abrir-lhes
caminho através das moitas. Isolda montava o cavalo de Tristão, que
este conduzia pela rédea; então, atravessando pela última vez os
bosques mergulhados nas trevas, avançam sem uma palavra. Aos
primeiros alvores da madrugada, repousaram um pouco, depois
retomaram a marcha até chegarem ao eremitério. Na soleira da capela,
Ogrin lia um livro. Viu-os e, de longe, chamou-os: “Amigos, como o
amor vos persegue de miséria em miséria! Quanto tempo ainda durará
a vossa loucura? Coragem, arrependei-vos!” Tristão falou em primeiro
lugar: “Trazemo-vos, irmão Ogrin, uma nova que vos alegrará o coração:
temos agora vontade de nos reconciliar com o rei. Se ele consentir no
acordo que lhe propomos, estou pronto a entregar-lhe a rainha. E até,
se o exigir, a ir-me para longe, para a Bretanha ou a Frísia. Todavia, se
o rei me admitisse junto dele, voltaria para a corte e servi-lo-ia corno é
meu dever.” Isolda falou por sua vez numa voz dolente: “Irmão Ogrin,
compreendo bem, não posso viver mais a vida que levei durante dois
anos. Não digo que me arrependo de ter amado e de amar Tristão:
nunca de tal me arrependerei. Mas não tenho mais força para suportar
uma existência tão rude e miserável. Suportei-a tanto quanto pude,
agora estou fraca demais para persistir nessa vida. Peço-vos, santo
eremita, ajudai-nos com os vossos conselhos.” O eremita escutou-a e
comoveu-se até às lágrimas: “Agradeço-te, Deus Todo-Poderoso, por
teres inspirado salutares remorsos a estes infelizes. Bendito sejas por
me teres deixado viver o suficiente para vê-los finalmente resolvidos a
mudar de vida! Tristão e Isolda, escutai-me: quando dois se amaram
com amor culpado, depois lamentam o pecado e se afastam um do
outro, Deus nunca lhes recusa o perdão. Vou escrever uma carta ao rei:
far-lhe-ei saber que estais aqui e que nada haveis cometido que
justifique o seu rancor. Graças aos céus, escapastes às intrigas do
anão, que foi o seu indigno conselheiro. Se Tristão levou a rainha
consigo, foi por piedade, para não a abandonar ao seu infortúnio,
entregue ao bando de leprosos. Eis o que é preciso dizer para vos
justificar, pois, para fazer as pazes, é por vezes permitido mentir um
pouco... Se o rei quiser esquecer os agravos contra vós, regressareis de
boa fé à corte.” “Homem de Deus — disse Tristão —, falais com grande
senso; é assim que é necessário escrever ao rei. Acrescentareis somente
que, para minha salvaguarda, peço a meu tio que expresse o acordo por
escrito. Que mande colocar a resposta num dos braços da Cruz
Vermelha. Quando a receber, confiando na sua palavra, cumprirei a sua
vontade.”
O irmão Ogrin serviu-lhes primeiro leite de cabra, pão de centeio
cozido na cinza e legumes com sal. Quando ficaram saciados, o santo
homem aproximou-se da escrivaninha e, num pergaminho novo,
escreveu a carta como queria o visitante; em seguida, levantou-se e
estendeu-a a Tristão, que a selou com o anel. “Amigo — disse o eremita
—, qual de nós levará a mensagem?” “Eu próprio” — respondeu Tristão.
“Isso não pode ser. pois o risco é demasiado grande.” “Certamente;
conheço bem o local. Partirei a cavalo com Gorvenal e apear-me-ei à
entrada da cidade.” Após o pôr-do-sol, Tristão põe-se a caminho com o
escudeiro. Cavalgam toda a noite e chegam a Tintagel à hora em que a
sentinela toca a trombeta na muralha para anunciar a aproximação do
dia. Tristão deixa-se deslizar para o fosso, transpõe a cintura de
muralha do castelo e chega sem novidade junto do quarto do rei.
Aproxima-se da janela e chama-o pelo nome. Marcos acorda e,
espantado, pergunta: “Quem és para vires a esta hora?” “Sire, é Tristão.
Trago-vos uma carta: encontrá-la-eis no alargamento do vão da janela.
Não posso demorar: dar-me-eis a resposta no local indicado.” “Por
Deus, querido sobrinho, espera que eu já vou.” O rei levanta-se da
cama, corre à janela, pega na missiva do pergaminho e por três vezes
chama Tristão. Este está longe, já se juntou a Gorvenal nas portas da
cidade. “Estás louco? — exclama o escudeiro. — Vamos ser
perseguidos! Fujamos pela vereda!” Cavalgaram a tal velocidade por um
caminho desviado que atingiram o eremitério à hora sexta. Na capela,
Ogrin pedia a Deus que concedesse o seu socorro a Tristão; suspirou
quando os viu de volta. Isolda saiu- lhes ao encontro. Desde a partida
que achara a espera bem longa. Atormentado com perguntas, Tristão
contou a escapadela: como penetrara na cidade até ao castelo, o que
dissera ao rei e como este o chamara três vezes enquanto fugia. Ogrin
junta as mãos: “Senhor — exclama —, bendito sejas! Doravante tudo
correrá bem. O rei não tardará a dar-nos notícias suas.”
XXIII
A SEPARAÇÃO DOS AMANTES
QUANDO marcos encontrou a mensagem, chamou o capelão e
estendeu- lha. O clérigo quebrou o selo de cera e leu alto o que escrevia
Tristão. Marcos regozijou-se com as novas que continha a carta, pois
continuava a amar a mulher, e desde que a surpreendera adormecida
junto de Tristão na floresta de Morois, afligia-se por tê-la perdido.
Mandou imediatamente acordar os barões. Mal se encontraram
reunidos no salão, tomou a palavra: “Senhores, eis uma carta que
acabo de receber. Sou o vosso rei; vês sois meus vassalos e deveis-me
conselho. Escutei, pois, o que me escrevem.” O clérigo desdobrou o
pergaminho e leu sem nada omitir: “Ao nobre rei Marcos, Tristão, seu
sobrinho, envia saudações e amor, assim como a toda a baronagem!
Rei, sabes como, depois de ter morto o dragão furioso, conquistei com
essa proeza a filha do rei da Irlanda. Trouxe-a para este pais e tu
tomaste-a por mulher perante a tua corte reunida. Depois de o teu
casamento ter sido celebrado, Kariado mais quatro traidores
enganaram-te com as suas calúnias: mentiam e ainda estou pronto a
prová-lo e a lutar com armas iguais contra quem tenha falado mal da
rainha. E no entanto, querido tio, quiseste-nos queimar vivos, a ela e a
mim. Mas Deus ouviu as orações das pobres gentes e teve piedade de
nós. Quanto a mim, escapei da pira saltando do alto de uma falésia; foi
então que entregaste Isolda aos leprosos para melhor a desonrar, mas
eu libertei-a das suas mãos e fiz justiça. Poderia deixá-la à mercê
desses vagabundos? Fugi com ela e temos vivido um junto do outro,
protegidos de ti pela espessura dos bosques. Mandastes proclamar um
pregão que prometia uma recompensa a quem nos entregasse, mortos
ou vivos, mas Deus, na sua clemência, preservou-nos de todo o mal. Há
poucos dias, surpreendeste-nos numa cabana de folhagem, na floresta
de Morois, quando dormíamos, inocentes, lado a lado. Deus inspirou-te
pensamentos de clemência: poupaste-nos sem mesmo nos acordares.
Deixaste-nos, em penhor da tua benevolência, o teu anel, a tua espada
e as tuas luvas. Sire, compreendemos a mensagem e queremos
responder. Se desejas agora reaver a loura Isolda, e acolher-me de novo
no teu palácio, nenhum barão desta terra te servirá mais fielmente do
que eu. Se me repeles, por temor ou rancor, irei combater para o rico rei
de Gavoie e não me tornarás a ver. A ti compete a decisão; não posso
mais suportar ver a rainha viver na miséria e na penúria, entre os
animais da floresta. Se não aceitares o acordo que te proponho e se te
recusares a receber a rainha, por amizade e honra a levarei novamente
para a Irlanda, donde a trouxe, e reinará no seu pais. Sire, manda
suspender a tua resposta, qualquer que seja, num dos braços da Cruz
Vermelha.”
Os barões vêem que Tristão, uma vez mais, lhes oferece batalha
para demonstrar a inocência de Isolda e a sua. Mas nenhum deles está
interessado em pegar nas armas e expor o corpo para sustentar a
acusação. Os traidores calam-se; Dinas de Lidan e aqueles que nunca
haviam acusado Tristão exclamam unanimemente: “Sire, retomai a
vossa mulher, pois foram os insensatos que vos indispuseram contra
ela! Mesmo admitindo que tenha cometido alguma imprudência, expiou
tão duramente essa falta que lhe podeis conceder a remissão. Quanto
ao vosso sobrinho, sem passar o mar, que vá combater para Gavoie, o
rico reino que o rei da Escócia acaba de invadir. Ali encontrará emprego
para o seu valor. Mais tarde, se o julgardes conveniente, podereis
chamá-lo de novo para junto de vós. Mandai-lhe, pois, as vossas
condições e ordenai-lhe que traga, sem mais tardar, a rainha.” O rei fez
sinal ao capelão: “Senhor, escrevei-me rapidamente uma carta; os meus
barões disseram-vos o que é preciso dizer; não tenho nada a
acrescentar. O meu único desejo é rever Isolda, a minha doce esposa,
que tanto sofreu. E não deixeis de saudar da minha parte Tristão, o
meu querido sobrinho. Que desde esta tarde a mensagem seja
suspendida num dos braços da Cruz Vermelha.”
Em vão Tristão tentou dormir nessa noite. Antes de esta chegar a
meio, levantou-se, cavalgou através da Charneca Branca, até a Cruz
Vermelha, encontrou suspensa num dos braços da cruz a carta do rei e
trouxe-a para o eremitério. Tendo-a decifrado, Ogrin viu que o rei
consentia em acolher de novo Isolda, sua mulher. Falou então como
convinha a um homem que crê em Deus: “Tristão, o rei ouviu-te. A
conselho dos barões, declara-se pronto a receber Isolda, mas não a
tomar-te ao seu serviço. Tens de guerrear, durante um ano ou dois, em
terra estrangeira, e depois, se o rei e a rainha o desejarem, chamar-teão
de novo à corte. É uma sábia medida, e a ela te deves submeter.
Dentro de três dias, incontestavelmente, conduzirás Isolda ao Vau
Aventuroso.” “Deus — exclamou Tristão —, que desgosto ter de deixar a
minha querida! Mas tenho de me resignar, pois a sua miséria já durou
demasiado.” Em seguida, voltando-se para Isolda, disse-lhe: “Rainha,
esta separação será bem dura para ti e para mim, mas só durará um
tempo. Se me mandares chamar por um mensageiro, voltarei
imediatamente para te reconfortar e, se for preciso, para te socorrer; o
que quer que me ordenes, cumprirei a tua vontade. Quando chegar a
hora de nos separarmos, trocaremos penhores e juraremos acorrer
sempre que um de nós apelar para o outro.” A rainha soltou um suspiro
e respondeu: “Tristão, é assim que devemos fazer. Queres deixar-me o
teu cão Husdent, que partilhou das nossas misérias? Jamais cão algum
terá sido mais amimado, se ficar comigo. Quando estiver triste, belo e
doce amigo, ele far-me-á pensar em ti e o meu coração encher-se-á de
alegria. Eu tenho um anel de prata, com o engaste de jaspe verde, cuja
pedra possui uma virtude maravilhosa. Dar-to-ei e tu usá-lo-ás sem
cessar no dedo, pois de cada vez que o olhares verás a minha imagem
na tua lembrança como se eu estivesse presente ao teu lado. Quando
me quiseres ao pé de ti, confia-lo-ás ao mensageiro para que eu o
reconheça. Bastar-me-á vê-lo e asseguro-te que nenhuma muralha,
nem torre, nem fortaleza me impedirão de tudo abandonar para
cumprir o teu desejo, quer seja sensatez ou loucura.” “Bela Isolda, como
penhor de amor, deixar-te-ei o meu cão Husdent e receberei o teu anel
em troca.”
Os banidos não podiam reaparecer na corte com as roupas em
farrapos. O bom eremita pôs-se à procura de trajes novos. Dirigiu- se ao
monte São Miguel da Cornualha, onde havia um mercado de tudo,
Comprou pele de esquilo, branca e cinzenta, finos tecidos de seda, de
púrpura e de escarlate e, para Isolda, uma camisa mais branca que florde-
lis. Vendo-o fazer tais compras, os mercadores riam com gosto e
zombavam do santo homem, sem que este se importasse com isso.
Também adquiriu um belo palafrém treinado a andar a passo travado,
com arreios decorados a ouro. O eremita gastou nisso todo o seu
pecúlio, mas pouco lhe importa: tanto procurou, tanto regateou que,
com os seus cuidados, a rainha ficou suntuosamente vestida e provida
de uma rica equipagem. Isolda agradeceu-lhe alegremente e disse:
“Eremita, dar-vos-ei três vezes mais quando tiver regressado à corte!”
Por toda a terra da Cornualha, Marcos mandou proclamar pelos
arautos que ia reconciliar-se publicamente com a rainha e que a
acolheria no dia marcado no Vau Aventuroso. As damas e barões são
numerosos, de tal modo estão desejosos de rever Isolda: era amada por
todos, exceto pelos traidores, que Deus os amaldiçoe! No dia fixado para
o encontro, o rei avançou, seguido por um longo cortejo. Ricos pavilhões
haviam sido erguidos na pradaria. Pouco depois, Tristão chegou à outra
margem, cavalgando no corcel, e a rainha, perto dele, montava o
palafrém. Gorvenal seguia-os a alguma distancia e bom cão Husdent
corria em todos os sentidos à volta deles. Por prudência, Tristão, que
desconfiava dos traidores, vestira sob a túnica uma cota de fortes
malhas e Gorvenal levava as armas do seu senhor. Viram ao longe as
tendas e reconheceram o rei entre os fiéis. O bravo inclinou-se para
Isolda e disse: “Eis chegado o momento, bela. Confio-te Husdent, o meu
fiel cão de caça; não o deixes afastar-se! Vejo do outro lado do vau o rei,
teu senhor, com os homens da sua corte; em breve não poderemos mais
conversar livremente um com o outro. Mas, por Deus Todo-Poderoso,
promete-me que, quando te enviar algum mensageiro portador do teu
anel de jaspe verde, farás o que te disser.” “Amigo Tristão, escuta-me.
Se um enviado se apresentar sem o anel de jaspe verde que acabas de
pôr no dedo, não acreditarei em nada do que possa dizer; mas quando
vir o anel, nem torre, nem muralha, nem fortaleza me impedirão de
realizar, lealmente e com toda a honra, a vontade do meu amigo.” “Deus
te abençoe, bela Isolda!” Atraiu-a a ele e apertou-a nos braços. Depois,
como se afastasse, ela segurou-o: “Querido — disse —, mais uma
palavra. A conselho de Ogrin, vais restituir-me ao rei e em seguida
deixarás este país. Consinto nisso, mas promete-me que não te afastas
antes de saber como o meu senhor se conduzirá comigo. Esta noite, vai
esconder-te em casa de Orri, o florestal, que já te deu algumas vezes
abrigo. O traidor Guenelon morreu, mas os outros sobrevivem e temo as
suas ciladas. Esconder-te-ás no celeiro, debaixo da cabana, e eu enviarte-
ei as mensagens pelo meu lacaio Périnis.” “Não temas nada, bela
amiga. Velarei por ti tanto tempo quanto for preciso. Que aquele que
pensa ofender-te se acautele comigo como com Satanás!”
Os dois grupos encontravam-se agora um em frente do outro, nas
margens opostas do vau. Estavam suficientemente próximos para
trocarem as saudações. O rei vinha na frente com o senescal Dinas de
Lidan, à distancia de um tiro de arco da escolta. Tristão agarrou pelas
rédeas o cavalo de Isolda, fê-lo atravessar o Vau Aventuroso e parou
junto de Marcos, a quem primeiramente saudou: “Rei, restituo-te a
nobre rainha tua mulher. Fica sabendo que jamais homem algum
devolveu tesouro mais precioso.” Marcos procurou em vão dissimular a
emoção e mostrar-se senhor de si; segurou o estribo à rainha enquanto
esta se apeava, recebeu-a nos braços e apertou-a ternamente contra o
coração. Todos os assistentes olhavam em silêncio e vários ficaram
comovidos até às lágrimas. Quando os esposos afrouxaram o abraço,
Tristão continuou com voz firme, os olhos fixos no rosto de Marcos:
“Sire, a rainha não desmereceu, nem eu. Sabe-lo agora, uma vez que
nos recebes neste dia com grande honra. Se o quiseres, ficarei junto de
ti para te servir, e se alguém persistir em me acusar, peço-te que me
deixes justificar em presença dos teus barões. Se perder, podes
mandar-me queimar em enxofre; se, pelo contrário, o vencer, reterme-ás
ao pé de ti.” O rei, no íntimo, inclinava-se a ceder ao desejo de Tristão;
assim, afastou-se um pouco para deliberar uma última vez com o
conselho. Confiou a Dinas de Lidan o cuidado de fazer companhia a
Isolda. O senescal, que era sábio, cortês e bem-educado, apressou-se a
entreter a rainha com palavras amáveis. Ajudou-a a despir o casaco de
escarlate e ela apareceu na túnica de seda coberta com uma outra de
finos bordados. O eremita que os comprou não olhara as despesas! O
vestido era rico, e gracioso o corpo que cobria, a despeito das privações.
Só o rosto parecia pálido e os traços um pouco abatidos; os olhos claros
de Isolda não estavam menos luminosos e os cabelos mais louros que
nunca. O senescal admirava- a e sorria de prazer. Dois de entre os
traidores, Gondoïne e Denoalen, se enterneceram. Fingindo indignação,
aproximaram-se do rei e disseram-lhe em confidência: “Sire, vede a
rainha que conversa alegremente com Dinas, como se nenhum remorso
a atormentasse. Será falta de pudor ou inconsciência? Tivemos todavia
boas razões pata suspeitar dela! Se voltar para a corte em companhia
de Tristão, a maledicência terá razões e as pessoas reprovarão a vossa
complacência. 11 necessário deixar partir o vosso sobrinho e, mais
tarde, quando Isolda vos tiver provado a sua sinceridade, podereis
chamá-lo.” “O que quer que me digam — respondeu Marcos —, seguirei
o vosso conselho, pois acho-o bom.”
Então o rei chamou Tristão de parte e fez-lhe compreender que
devia deixar a Cornualha durante um tempo. Censurava a si próprio o
rigor para com o sobrinho e custava-lhe bani-lo, mas temia provocar
uma vez mais o ressentimento dos traidores. Não querendo deixar
Tristão sem uma palavra de amizade, perguntou-lhe para onde ia.
Tristão respondeu: “Sire, para a Frisia ou para a Bretanha, ou então
para o rico rei de Gavoie, a quem os escoceses invadiram a terra.”
“Querido sobrinho, basta uma palavra e darte-ei mais que o necessário:
ouro e prata em quantidade, peles de esquilo branco e cinzento, com
que te vestires e viveres à vontade.” “Rei da Cornualha — respondeu
Tristão —, não tenho que fazer dos vossos bens. De vós não aceitarei
um vintém. Pobre como sou, é com grande alegria que irei servir um rei
poderoso. O único favor que vos solicito hoje é que me devolvais a
espada, aquela que me destes outrora para combater o Morholt e cuja
lamina se fendeu no crânio do gigante. Haveis-ma retirado, nobre tio,
quando me surpreendestes numa cabana de Morois, adormecido perto
da rainha. Permiti que a recupere agora, antes de partir em terra
estrangeira. Mandei o meu escudeiro trazer a vossa espada real com o
botão do punho em ouro cinzelado, aquela que colocastes junto de mim,
no lugar da minha, em sinal da vossa clemência: não convém que a leve
comigo para o exílio.” E assim foi: Marcos recuperou sua espada e
devolveu a de Tristão.
Sem mais nenhuma palavra, Tristão pegou nas rédeas, meteu o
cavalo a trote e encaminhou-se para o mar. Isolda seguiu-o com o olhar
enquanto o pôde ver. Dinas havia-se reunido ao jovem: cavalgava a seu
lado e falava-lhe para aliviar a sua dor: “Amigo — disse —, não percas a
coragem. Talvez vejas brevemente o fim do exílio. E em todo o caso,
conheço aqui alguém que te não esquecerá.” “Dinas — respondeu
Tristão —, sabes por que parto. Nem tu nem eu saberíamos dizer
quando regressarei.” Sete vezes se beijaram; depois, cada um, triste e
silencioso, foi para seu lado.
A noticia do regresso de Isolda espalhara-se pela cidade. Todos,
nobres e vilãos, homens, mulheres, velhos e crianças, haviam sadio ao
seu encontro, enquanto os sinos dos mosteiros tocavam a rebate. Mas
quando souberam que não veriam Tristão, que o rei o havia proscrito,
uma grande tristeza apoderou-se deles. No entanto, receberam bem o
cortejo e saudaram Isolda com vivas quando esta apareceu, sentada no
palafrém, na rua principal, juncada de flores, entre as casas
engalanadas. O rei, a rainha e os barões subiram a encosta que leva ao
mosteiro de Saint-Samson. Bispo, monges e abades, paramentados com
alvas e capas, saíram ao pórtico para recebê-lo. O bispo pegou na mão
da rainha e conduziu- a à igreja, onde lhe apresentaram um tecido de
brocado que ela depôs no altar. Terminada a cerimônia, o rei, os condes
e os marqueses levaram Isolda para o palácio, cujas portas foram
abertas. Toda a gente pôde entrar livremente e comer até fartar. Mesmo
no dia de núpcias, Isolda não recebera semelhante honra, pois, para
festejar o seu regresso, o rei libertara cinqüenta servos e armara vinte
pajens.
Nos aposentos das mulheres, Isolda encontrou a fiel Brangia:
esperava-a há dois anos e nunca cessara de aguardar o seu regresso.
Na altura da maior cólera do rei, a manhosa soubera, ao mesmo tempo
que continuava devotada à sua senhora, granjear a benevolência do
soberano, pois continuava a enganá-lo estranhamente, fazendo-o crer
que abominava Tristão e que este a odiava. Reviu Isolda com
manifestações de alegria, e quando toda a gente se retirou, as duas
mulheres passaram longas horas em afetuosas confidências. Quanto a
Périnis, o lacaio irlandês que seguira Isolda até à Cornualha, esse
soubera, com discrição e habilidade, passar despercebido no meio da
tormenta e ficar no castelo ao serviço de Marcos.
Entrementes, Tristão, após a partida de Dinas de Lidan,
abandonara a estrada e embrenhara-se, em companhia de Gorvenal, no
atalho que conduzia à habitação de Orri, o florestal. Caía a noite:
penetrou, sem ser visto, na cabana e instalou-se no celeiro. Durante
todo o tempo que Tristão permaneceu no esconderijo subterrâneo,
recebeu por meio de Périnis novas da rainha.
XXIV
O JURAMENTO JUDICIÁRIO É EXIGIDO
A RAINHA AINDA não decorrera um mês quando o rei foi um dia
caçar com os traidores, Audret, Gondoïne e Denoalen, e mais um grupo
de monteiros. Numa charneca, num alqueive que os camponeses
haviam queimado, o rei parou, prestando atenção aos latidos dos cães.
Os três barões aproveitaram este instante de descanso para abordaremno
e falaram-lhe deste modo: “Rei, perdoaste à rainha, e era teu direito,
mas se ela se conduziu como uma mulher leviana, o teu perdão não a
dispensa de se justificar segundo a lei desta terra. Vários dos teus
homens freqüentemente pediram que um processo fosse instaurado e
um julgamento realizado sobre os atos censurados a Isolda e a Tristão.
Exige que a rainha a ele se submeta e, se recusar, que deixe por sua vez
este reino!” O rei ficou vermelho de cólera: “Por Deus, senhores
cornualhenses, não tendes o direito de falar assim. Quando Tristão
trouxe a rainha até ao Vau Aventuroso, não se propôs justificar? Quem
de vós, nesse momento, ousou pegar em armas contra ele? Bani-o com
medo de vos desagradar; obedecer-vos-ei uma vez mais expulsando a
minha mulher? Por Santo Estêvão, o mártir, impondes-me exigências
demasiado duras: será portanto necessário que vos guerreie. Declarovos:
dentro de poucos dias, vereis reaparecer Tristão em minha casa!
Deus vos destrua, vós que haveis causado a minha vergonha! Sim,
chamarei o bravo que expulsastes.”
Perante o furor do rei, os três voltam rédeas; na charneca, num
valezinho, apeiam-se. Um deles diz: “Que poderemos fazer? O rei
Marcos vai chamar o sobrinho, e, se ele volta, lá se vai o nosso crédito e,
quem sabe, a nossa vida. Se nos encontrar sozinhos, na floresta ou no
caminho, ninguém o poderá impedir de nos tirar o sangue do corpo. É
mais conveniente fazermos as pazes com o rei, a fim de que ele renuncie
a chamar o sobrinho. Calemo-nos, não lhe peçamos mais nada.” Vão ter
com o rei, que ficara no alqueive. Marcos viu-os aproximarem-se e jurou
entre-dentes não considerar o que lhe poderiam dizer. “Sire, escutainos:
vós estais triste e enraivecido por nos preocuparmos tanto com a
vossa honra. Aconselhamo-vos por dever e vós levai-nos a mal. Porém,
uma vez que não nos quereis acreditar, fazei como vos apraz! Calar-nosemos,
pois não desejamos a guerra. Perdoai somente a nossa lealdade.”
O rei, ainda mais furioso, ergue-se no arção e exclama, o dedo apontado
para o horizonte: “Senhores, o caso está arrumado; afastai-vos da
minha terra. Por Santo André, a quem vão rezar além-mar até à
Escócia, haveis-me feito tal chaga no coração que me atormentará um
ano inteiro.” “Sire — respondeu Audret —, exaltais-vos contra nós sem
motivo. Se persistis em querer expulsar-nos, causar-vos-emos
preocupações como nunca tivestes.” Proferidas estas ameaças, os
traidores afastam-se a toda a pressa; têm fortes castelos construídos em
altos rochedos e cercados de estacas agudas. Juram que ai se vão
entrincheirar e conspirar contra o rei.
Para regressar ao castelo, Marcos não esperou pelos cães nem
pelos monteiros. Em Tintagel, diante da torre, desce do cavalo e entra,
sem ser visto, no quarto das mulheres. Isolda vem ao seu encontro,
tira-lhe a espada, depois senta-se aos seus pés. O rei pega-lhe na mão;
ela nota-lhe a expressão selvagem e cruel do seu rosto. “Ai de mim! —
pensa com os seus botões —, Tristão foi descoberto! Quem sabe se o rei
não se apoderou dele?” Cai de joelhos diante do seu senhor e, o rosto
lívido, desmaia. Marcos ergue-a nos braços e dá-lhe beijos, de tal modo
que ela volta a si. “Senhora, que tendes?” “Sire, tenho grande medo.”
“Então de quê?” “Sire, vejo pelo vosso rosto que estais encolerizado. Por
que levar tão a sério os acasos e os jogos da caça?” Este dito diverte o
rei, que ri e a abraça uma vez mais. “Querida, não é de caça que se
trata. Se me vistes em tal furor, foi por culpa de três traidores que,
desde há muito, procuram romper o nosso casamento. Dei-lhes
demasiada atenção até hoje. Com as suas falsas palavras, afastaram de
mim o meu sobrinho, mas quero chamar Tristão, que me vingará e os
enforcará.” A rainha não ousa dizer alto o que pensa: “Deus seja
louvado! O meu senhor enfureceu-se contra aqueles que fizeram nascer
o escândalo!” Em seguida, pergunta: “Senhor, que mal disseram de
mim? Cada um pode pronunciar as palavras que quiser e, salvo vós,
não tenho nenhum defensor; com as suas mentiras, sem descanso nem
tréguas, procuram a minha perda.” “Senhora — diz o rei —, podeis
alegrar- vos, pois bani os três traidores para longe da corte.” “Por que,
Sire? Que mais inventaram?” “Defendem que não justificastes o agravo
que vos fizeram de ter amado loucamente Tristão.” “Querem
verdadeiramente que justifique tal agravo?” “Por certo que o pedem.”
“Senhor, estou pronta a submeter-me ao que eles exigem, e o mais
brevemente possível. Ah!, nunca mais me deixarão uma hora de paz?
Mas se Deus manifestar a minha inocência, estou certa de que depois
ficarão quietos e não pedirão mais nada! Também quero que o rei Artur
e a sua corte assistam ao meu julgamento, Gauvain, o seu sobrinho,
Girflet e Keu, o senescal: com eles por testemunhas, pronunciarei o
juramento. Senhor, fixai uma data e mandai dizer ao rei Artur que o
quereis encontrar, a ele e aos seus fiéis, no dia marcado na Charneca
Branca.” O rei respondeu: “Rainha, falastes como é de honra.” E manda
todos os seus homens dirigirem-se ao julgamento.
Quando Marcos saiu do quarto das mulheres, Isolda chamou
Brangia de parte disse-lhe: “Procura comigo, peço-te, a maneira como
poderei, sem atrair sobre mim por meio de um perjúrio a terrível
vingança de Deus, pronunciar sobre as relíquias dos santos o
juramento que exigem de mim os traidores.” “Senhora, o mais seguro
seria recusardes prestar esse juramento, pois se tomais Deus por
testemunha perante um tribunal encobrindo ou dissimulando a
verdade, o castigo do Todo-Poderoso não se terá esperar! Todos os mais
sábios clérigos vo-lo dirão.” “Sei-o tão bem como tu, mas os meus
inimigos não me darão tréguas enquanto não tiver prestado esse
juramento. Também prometi ao rei Marcos submeter-me a esse rito,
contanto que seja perante um tribunal de justiça presidido pelo rei
Artur, rodeado pelos bravos da Távola Redonda.” “Senhora, é a melhor
garantia de o direito ser observado nesse julgamento. Mas qual será a
fórmula do juramento?” “Terei de jurar que nunca amei Tristão com
amor culpado ou ofensivo para o meu marido.” “Senhora, não podeis
empregar essa fórmula sem cometer perjúrio e incorrer na cólera divina,
cá embaixo e no outro mundo. O filtro pôde muito bem servir de
desculpa perante o eremita Ogrin, como me haveis contado, mas não
vos autoriza a jurar contra a verdade. Acreditai- me, tendes de
empregar outra fórmula, com palavras tão bem escolhidas e tão
engenhosamente compostas que possam ser interpretadas no sentido
da verdade por aqueles que a sabem e num sentido muito diferente por
aqueles que a não conhecem.” As duas mulheres começaram então a
procurar juntas: imaginaram, para sossegar o rei Marcos sem ofender a
Deus, um estranho estratagema para o qual o concurso de Tristão era
necessário. Brangia riu muito só à idéia do ardil e Isolda divertiu-se
com ela.
Já todos sabem pelo pais o dia da assembléia e que o senhor da
Távola Redonda ai estará com toda a sua corte. Marcos manda Périnis
levar o mais depressa possível uma mensagem ao rei Artur, rogando-lhe
que presida ao julgamento; Isolda chama Périnis antes da partida e
ordena-lhe que passe primeiro por casa do florestal Orri para prevenir
Tristão do que deverá fazer: “Diz-lhe que no dia marcado se encontre
sem falta no Pântano do Mau Passo, perto do vau que domina a
Charneca Branca, e que separa o reino de Artur do reino da Cornualha;
que esteja no outeiro onde começa o paneiro de vigas e de ramagens
que serve para passar o lodo. Quero que se enferpele com farrapos
como um leproso, que segure numa das mãos um cálice de madeira e
que se apoie com a outra na muleta. O rosto deve estar pintado e
inchado: ele sabe o segredo. A todos os que vierem assistir aos debates,
pedirá esmola. Lá estarei, mas fingirei não o reconhecer. Que fique
descansado, pois saberei fazê-lo representar o papel, com a condição de
se deixar manejar e de me obedecer em tudo.”
Périnis parte e chega a casa de Orri ao cair da tarde, no momento
em que o florestal e os hóspedes acabam de comer. Tristão acolhe- o
com alegria e escuta a mensagem. Jura que todos aqueles que
pensaram mal e censuraram a amante agiram no sentido da sua
própria infelicidade. “Diz à rainha que, no dia fixado, me encontrarei no
local marcado, coberto de andrajos como um pedinte. Mendigarei tão
bem que o rei Artur, o rei Marcos e todos os outros se não poderão
dispensar de me dar esmola. Acrescenta que acho muito bom tudo o
que faz e fará para vencer a prova do juramento e que lhe quero
obedecer em tudo. Que se mantenha de boa saúde e alegre: será
vingada daqueles que lhe estragam a vida. Leva-lhe finalmente a
saudação e a homenagem que devo à sua lealdade.” Périnis montou de
novo e cavalgou até ao castelo de Durham, onde se encontrava a Távola
Redonda. Aí, perante o rei Artur e a sua corte, contou como a rainha
Isolda aceitara justificar-se com o juramento e qual o dia e o lugar
fixados pelo rei Marcos para o julgamento. Os barões endureceram-se
contra os três traidores da Cornualha: sire Gauvain e o bravo Girflet
desfizeram-se em ameaças, pedindo ao rei permissão para matá-los em
duelo. Artur era demasiado cortês para o consentir: “Senhores — disse
—, livrai-vos dos arrebatamentos da cólera e de qualquer descortesia;
ponde antes a vossa honra em aparecerdes todos na assembléia desse
julgamento no vosso mais belo corcel, com escudo novo e rico
paramento, por cortesia para com a rainha Isolda. Em seguida, o rei
quis escoltar em pessoa o mensageiro, encarregando- o de levar os seus
respeitos à senhora da Cornualha.
No caminho, Périnis encontrou o florestal que, não há muito, fora
à corte do rei Marcos, todo esbaforido, comunicar-lhe que descobrira os
amantes numa cabana de Morois, mas ficara bem decepcionado, pois
nunca recebera a recompensa prometida. Depois disso, num dia em que
estava bêbado, o florestal havia-se gabado da traição e queixara-se da
ingratidão de Marcos. Périnis reconheceu-o imediatamente. O homem
acabava de cavar, no solo da floresta, um buraco profundo e cobria-o
habilmente com uma camada de ramos, para apanhar na armadilha
lobos e javalis. Viu arremessar-se contra si o lacaio da rainha e quis
fugir; mas Périnis empurrou-o para a berma do fosso: “Espião, que
vendeste a rainha, para que fugir? Fica ai, ao pé da sepultura que tu
próprio tiveste o cuidado de cavar.” Fez girar o pau de carvalho nodoso,
e bate na fonte do fronte do traidor com tal violência que ele caiu
inanimado. Périnis, o louro, o fiel, empurrou com o pé o corpo para o
fosso, depois tapou-o com torrões de terra e folhas secas.
XXV
O JURAMENTO AMBIGUO
CHEGOU a data da assembléia em que Isolda, a loura, se devia
justificar com o julgamento. Era um dia quente, para o fim do verão.
Tristão, a seu pedido, fizera uma estranha vestimenta: uma cota de
burel grosseiro que trazia sem camisa sobre a pele, um alforje e velhas
botas de couro remendadas para cobrir-se, talhara uma ampla capa de
lã castanha, enegrecida pelo fumo. Assim enferpelado, parecia um
verdadeiro leproso; por prudência, escondia sob a capa a espada,
suspensa de uma corda que atara à volta da cintura. Gorvenal, que o
acompanhara até ali, dera-lhe sábios conselhos: “Tristão, não sejas tolo
por bravata. Observa bem os sinais que te fará a rainha e executa as
suas ordens.” “Se me ajudares, tudo ira bem; mas não devemos ir sem
as armas, pois podem-nos fazer falta. Levarás o meu cavalo arreado,
com o escudo e a lança, e emboscar-te-ás numa moita, na proximidade
do Mau Passo. Os dois reis estarão ai, rodeados pelos seus barões.
Enquanto armam as tendas na pradaria, do outro lado do vau, darlhes-
ei um famoso espetáculo!”
Gorvenal emboscou-se como Tristão lhe dissera. O falso leproso,
de bordão ao pescoço, cálice de madeira na mão, veio sentar-se no cimo
do outeiro que dominava os pântanos e o vau. Não era disforme, nem
corcunda, mas estava tão bem caracterizado que toda a gente
acreditava. Aos que passavam por ele dizia, lamentando- se: “Infeliz de
mim, que não nasci para me tornar mendigo nem ter tal oficio. Mas, no
estado em que estou, não tenho outro remédio.” As pessoas, apiedadas,
puxavam das bolsas e ele recebia humildemente as esmolas. Até aos
pedintes, aos vagabundos que jaziam de costas nas valas das estradas,
estendia o cálice. . Uns davam-lhe, outros injuriavam-no, chamando-lhe
vadio, devasso, e maltratavam-no. Ouvia e suportava tudo sem lhes
responder, mas quando se tornavam demasiado ameaçadores, afastavaos
com a muleta: magoou uma dúzia. Aos que lhe davam, dizia que ia
beber à sua saúde, pois um fogo ardente lhe devorava o corpo. Ninguém
desconfiou que não fosse verdadeiramente leproso.
Na pradaria, lacaios e escudeiros erguem os pavilhões de cores
vivas e, por vias e caminhos, chegam os cavaleiros em bandos,
apressando-se a atingir o pântano. Meu Deus, como o caminho é
péssimo! Merece bem a designação de Mau Passo! Mal se afastam do
pontilhão feito de tábuas postas sobre uma camada de lenha, os cavalos
entram no lodo até ao flanco e os cavaleiros cobrem-se de lama. O
leproso faz chacota do seu embaraço; grita-lhes: “Segurai as rédeas pelo
nó e dai às esporas! Para a frente! Não há mais lodaçal!” E quando
avançam, o pântano afunda-se sob eles. Então, vendo o cavaleiro
estatelar-se na vasa, Tristão, radiante, toca a matraca e bate com o
cálice no bordão. Artur aproximou-se do vau. Tristão vai ao seu
encontro e implora: “Ô grande rei! Sou pobre e filho de pobre, doente,
corcunda, desfigurado, leproso. Venho aqui para pedir esmola: não me
mandes embora; ouvi tantas vezes falar da tua generosidade! Tens belas
roupas de tecido cinzento e o pano de Remos é doce à tua pele branca.
Vejo as tuas pernas estreitamente cingidas por calções de fio verde e os
teus pés calçados de botas escarlates. Vê a minha roupa esburacada, vê
a minha pele, como me coço e tenho frio, embora o corpo me arda. Rei,
por Deus, dá-me as tuas polainas.” O nobre rei apieda-se. Dois lacaios o
descalçam; o leproso desce do cabeço para receber as polainas e volta
depois a subir. Por sua vez, chega o rei Marcos, orgulhoso e bem
trajado. O leproso quer ver se consegue qualquer coisa dele. Mais que
nunca, agita a matraca e fala com ênfase. O rei pára tira o capuz e só
conserva o gorro na cabeça “Toma, irmão, cobre o crânio e os ombros:
com certeza que, com o mau tempo, deves sofrer muito.” “Sire,
obrigado, isto me resguardará do frio.” E põe o capuz.
Com grande custo, Marcos atravessou o Mau Passo e juntou-se a
Artur, que, na margem dependente do seu reino, diverte-se com os seus
homens. Desde logo se informa de Isolda: Vem com o senescal Dinas de
Lidan, que se encarregou de escoltá-la — respondeu Marcos. “Mas como
irá atravessar o lameiro deste Mau Passo?” No mesmo instante, dois dos
barões traidores, Denoalen e Gondoïne, chegam diante do vau. Avistam
o leproso e perguntam-lhe por onde passaram os cavaleiros que menos
se enlamearam. Tristão aponta com a muleta: “Vedes essa turfeira? O
melhor caminho; vi vários passarem por ai.” Os traidores avançam e, de
repente, enterram-se ao mesmo tempo no lodaçal até à sela dos cavalos.
O leproso grita- lhes: “Ide, senhores. Segurai-vos bem aos arções e
avançai: digo- vos que é o caminho, vi passar por ele muita gente hoje.”
Mas os outros não encontraram nem margem nem fundo. Para ver
como sairiam dali, os dois reis e a sua gente aproximaram-se. Isolda, a
bela, chega por sua vez, montada num palafrém branco. Vem vestida
com uma túnica de seda clara e um longo casaco forrado de arminho;
as suas tranças louras caem-lhe até abaixo da cintura, presas na testa
por um círculo de ouro. Com grande alegria, vê os invejosos na lama e o
amado empoleirado no outeiro, vestido de mendigo; ri com vontade. E
Tristão, radiante, bate com o cálice no bordão e agita a matraca. Todos
os que aí se encontram riem também às gargalhadas. O leproso
interpela então Denoalen: “Agarra no meu bastão, bom senhor, segurao
e puxa com força com as duas mãos!” Quando o traidor segura bem
firme, Tristão deixa-o cair de costas e grita com voz de falsete: “Não
consigo segurar- te! O mal entorpeceu-me as mãos, levou-me as forças.”
Há agora à vontade, à volta dos dois reis, cem barões que se divertem a
observar os dois traidores chafurdando na lama. Estes se livram do lodo
com grande custo: têm de tirar as roupas e tomar banho antes de se
apresentarem na assembléia.
Isolda, que descera da montaria, faz sinal a Tristão que vai
também passar o vau. A seu lado, Dinas ocupa-se a ajudar a rainha.
“Senhora — diz-lhe —, ides sujar o vestido ao atravessar o pântano.
Ficaria triste se vos acontecesse algum dano.” Isolda ri-se, pois tinha a
sua idéia na cabeça. Despiu o casaco forrado de arminho, que confiou a
Dinas de Lidan, só conservando a túnica de seda branca, o diadema de
ouro, as jóias do pescoço e das mãos e os finos sapatos. Com um piscar
de olhos, fez compreender ao senescal que não precisava dele para
atravessar o vau. Dinas afastou-se, seguiu a margem e acabou por
encontrar outro vau um pouco mais baixo, por onde passou sem
dificuldade.
Isolda sabia perfeitamente que a observavam do outro lado.
Aproximou-se do palafrém e, mais depressa que um escudeiro, atou
sobre o arção as presilhas da gualdrapa, meteu a cilha sob a sela, tiroulhe
o freio e o peitoral, e depois, vergastando o animal com a chibata, fêlo
entrar na água de modo que passou sozinho o pântano e atingiu a
outra margem. Isolda via, do outro lado, os dois reis e os vassalos e
divertia-se com a sua surpresa. Que lhe aconteceria na travessia do
Mau Passo, privada de montada? Viram-na subitamente avançar para a
entrada da ponte de feixos e dirigir-se ao leproso empoleirado no
outeiro: “Mendigo, não me quero sujar na travessia; levar-me-ás às
costas como um burro, em passos lentos, sobre as pranchas do
pontilhão.” “Nobre rainha, não me peçais semelhante serviço: estou
doente e não me seguro nas pernas, de tal modo o mal me
enfraqueceu!” “Pouco importa, despacha-te e curva o lombo!” O leproso
obedece, baixa a cabeça e inclina as costas; ela monta nele, que se
estica, se apoia na muleta, avança pela travessa de madeira e anda
como que com grande esforço, coxeando, fingindo arquejar e escorregar
por vezes na lama Quanto a Isolda, muito à vontade, perna daqui,
perna dali, aperta fortemente o leproso entre as coxas e, com a mão,
apalpa-lhe as costas. Da margem, os assistentes observam-nos e não
adivinham nada. Na montaria, lentamente, Isolda atinge a outra
margem do pântano. Artur e Marcos foram ao seu encontro. A rainha
deixa-se escorregar. O portador pede-lhe com que se alimentar. “Ah! —
diz Artur —, mereceu-o bem, rainha, dai-lhe!” Responde Isolda: “Pela fé
que vos devo, sire, ele não necessita de absolutamente nada. Enquanto
o cavalgava, reparei que era um mendigo forte e, apalpando-o, senti que
o alforje estava cheio. Tem as vossas polainas e o capuz do meu senhor;
nada lhe darei; deve estar contente em ter-me sido útil.” Nisto, um
escudeiro lhe traz o palafrém e a rainha monta nele.
Diante das tendas dos dois reis, senhores, clérigos e gente do
povo estavam reunidos. Um lençol de seda ricamente bordado estava
estendido na erva e haviam ai disposto todos os corpos santos do pais,
tirados do tesouro das igrejas, relicários de ourivesaria, escrínios e
relicários esmaltados. Artur saiu do seu pavilhão e falou em primeiro
lugar: “Rei Marcos — disse —, ultrajar a rainha exigir-lhe semelhante
juramento. Aqueles que te levaram a reunir esta assembléia fizeram-te
uma patifaria e deviam pagá-la caro. Es demasiado crédulo e deixas-te
enganar pelos intrigantes. Mas já que Isolda, a nobre rainha, a
complacente, se quer submeter a esta provação, consinto que se realize
na minha presença. Declaro-o solenemente: uma vez justificada com o
juramento, mandarei enforcar todos aqueles que tiverem a audácia de
falar mal dela.” Marcos respondeu-lhe: “Ai de mim! As tuas censuras
atingem-me e aceito-as. Mas que podia fazer quando os meus barões
me predispunham contra a rainha? Fiz mal em ouvir- lhes as palavras
malevolentes e tomar as suas mentiras por avisos sinceros. Asseguro-te,
rei Artur, que, se depois deste julgamento, se obstinarem em a maldizer,
não terão de mim nenhum perdão.” Artur dirigiu-se então a toda a
multidão: “Gente da Cornualha, escutai-me! A rainha vai comparecer
livremente e de sua plena vontade: sobre as relíquias dos santos,
prestará juramento ao rei do Céu de que nunca teve com Tristão
relações das quais possa ser censurada. Quando a tiverdes ouvido
tomar Deus por testemunha, não mais tereis o direito de suspeitar
dela.”
Os assistentes dispuseram-se diante das tendas, e os dois reis
conduziram Isolda segurando-lhe as mãos. A rainha, depois de se ter
descalçado e suplicado a Deus, os braços estendidos para a frente,
avançou para as relíquias, vestida unicamente com a túnica de seda
branca. Em volta, os barões contemplavam a sua beleza. “Escutai-me,
Isolda, a bela — continuou Artur. — Jurai aqui que Tristão não teve por
vós mais do que o amor devido à mulher de seu tio e que vós não
tivestes por ele outro amor além do devido ao sobrinho de vosso marido.
Jurai-o.” Então Isolda respondeu: “Sire, farei ainda melhor do que o que
me pedis. A fim de o rei Marcos e todo o povo da Cornualha ficarem
inteiramente seguros de mim, perante Deus e toda a corte celeste, sobre
estas santas relíquias e sobre todas as que estão pelo mundo, juro que
jamais homem algum entrou nas minhas coxas senão o rei Marcos,
meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como
um animal de carga.” Estendeu então a mão direita por cima dos corpos
santos e, com uma voz forte e segura, pronunciou a fórmula
sacramental, segundo o rito da Santa Igreja: “Assim como disse a
verdade, possa Deus Todo-Poderoso vir em meu socorro!” Fez-se um
grande silêncio entre o povo e os barões, como se esperassem que Deus
se manifestasse por meio de um sinal sensível, mas nada se produziu.
Isolda rompeu o silencio em primeiro lugar e disse: “Rei Artur, ouvistes
o que jurei do meu marido e do leproso: excluo esses dois do juramento
e mais nenhum. Em verdade, não posso fazer mais nada.” Artur
respondeu: “Todos os que ouviram a fórmula deste juramento
concordarão que nada mais se pode exigir. A rainha era unicamente
obrigada a justificar-se em relação a Tristão, e prestou um juramento
que se aplica, excetuando o leproso, a todos os outros homens! Infeliz
daquele que, doravante, suspeite dela!”
O rei Artur dirige-se pela última vez ao rei Marcos, em presença
de todos os barões: “Rei, vimos e ouvimos bem a justificação de Isolda:
nada mais deixa a desejar. Que os traidores e os maus — poderia citarlhes
os nomes — não duvidem; que nunca mais deixem escapar uma
calúnia. Pois, em paz ou em guerra, se soubesse que dizem da rainha
Isolda qualquer má palavra, nada me impediria de vir eu mesmo vingála!”
“Nobre senhor — diz Isolda —, muito vos agradeço!” Da assistência
sobem aclamações dirigidas à rainha; na multidão, os traidores e os
seus amigos escondem-se e perdem-se. Depois, cada um volta para
casa, Artur para Durham e Marcos para Tintagel. Quanto a Tristão,
depois de ter escutado de longe o juramento, juntara-se a Gorvenal
numa moita e voltaram juntos para a cabana do florestal.
XXVI
DISFARCES E CRUELDADES DO AMOR
QUANDO Tristão, de regresso à cabana do florestal Orri, jogou
fora o bordão e despiu a roupa de leproso, perguntou a si mesmo se não
chegara o dia de afastar-se do país da Cornualha. Por que tardar ainda,
já que Marcos não dera seguimento ao projeto de voltar a chamá-lo?
Mesmo depois do juramento no Mau Passo, não achara bem pôr fim ao
seu exílio. É verdade que a rainha se justificara, saíra vitoriosa da
provação imposta pelos traidores; o rei, longe de lhe mostrar
ressentimento, honrava-a grandemente e amava-a. Artur, em caso de
necessidade, tomá-la-ia sob a sua salvaguarda: nenhuma perfídia
poderia doravante prevalecer contra ela. Por seu lado, Gorvenal
observava a Tristão que não podia continuar mais tempo, contra a
vontade expressa do rei, a rondar à volta de Tintagel sem arriscar
inutilmente a sua vida, a vida do florestal Orri, que lhe dava asilo, e o
repouso de Isolda. Tristão tardou ainda três dias, não podendo resolverse
a separar- se do país onde vivia aquela a quem amava. Quando
chegou o quarto dia. despediu-se do florestal e disse a Gorvenal:
“Querido mestre, eis chegada a hora da longa partida, vamos para o
país de Gales ou para o rico rei de Gavoie.
Puseram-se a caminho, tristemente, pela noite afora. Mas o
caminho ladeava o pomar do castelo, cercado de estacas, onde Tristão,
outrora, esperava pela amiga. A noite estava clara e o céu estrelado.
Numa curva do caminho, não longe da paliçada, viu destacar-se no céu
claro a silhueta altaneira do pinheiro grande. “Querido mestre, espera
no próximo bosque, estarei de volta em breve.” “Onde vais, louco?
Queres sem descanso provocar a morte?” Mas já com um salto ágil
Tristão transpusera a paliçada de estacas. Dirigiu-se para o pinheiro
grande, perto da fonte e da escadaria de mármore.
No quarto das mulheres, Isolda, estendida na cama, estava
acordada e Brangia repousava não longe dela. Subitamente, o canto de
um rouxinol elevou-se no jardim, primeiro débil e hesitante, depois
encheu-se e tornou-se mais seguro; a voz entrou no quarto pela janela
aberta e encheu-o com a sua quente harmonia. Isolda, extasiada,
escutava esta melodia que vinha encantar a noite. A rainha julgara
primeiro ouvir um rouxinol. A força de pensar nisso, uma dúvida
atravessou-lhe o espírito e transformou-se em breve numa certeza: “Ah!
1: Tristão! Assim imitava na floresta de Morois, para me deleitar, todos
os pássaros do bosque. Vai partir e afastar-se deste país: este canto é o
seu último adeus. Como se lamenta! Assim faz o rouxinol quando se
despede, no fim do verão. Querido, nunca mais ouvirei a tua voz!” A
melodia vibra, mais ardente. “Ah!, que exiges? Que eu vá? Não, lembrate
de Ogrin, o eremita, e dos juramentos feitos. Cala te, a morte
espreita-nos!” Os trinados redobraram, fizeram-se mais prementes.
“Que importa a morte? Chamas-me, queres-me, vou!”
Deslizou para fora da cama e deitou sobre o corpo um casaco
forrado de pele de esquilo. Brangia acompanhou-a até ao vestíbulo que
dava para o jardim e aí ficou de atalaia para prevenir a senhora ao
primeiro alerta. Isolda transpôs a soleira e embrenhou- se na alameda
que conduzia ao pinheiro grande. A medida que se aproximava do local
de onde provinha o chamado, o canto diminuía de intensidade; em
breve abrandou-se e dissipou-se na penumbra. Debaixo das árvores,
sem uma palavra, Tristão apertou a amada contra o peito e os braços
enlaçaram-se à volta dos corpos. Pela primeira vez se encontravam
sozinhos desde que se tinham separado no Vau Aventuroso e Isolda fora
entregue a Marcos.
Doravante, nunca mais Tristão se poderia encontrar com sua
amada, a não ser de longe a longe, com perigo de vida e sob um disfarce
do acaso. Na Charneca Branca, vestira a roupa de um leproso para
poder levá-la às costas de uma margem à outra do vau. Nessa noite,
escolhera a imitação do rouxinol. Até ao aproximar da aurora, não
desfizeram o abraço. Então ele saiu do jardim saltando por cima da
paliçada e, apesar das objurgações de Gorvenal, resolveu adiar uma vez
mais a partida. Com a cumplicidade de Brangia e de Périnis, os
amantes retomaram como outrora os encontros noturnos, primeiro no
jardim e depois no próprio quarto de Isolda. Ora, Gondoïne, um dos
traidores, tinha um servo que várias vezes empregara para espiar os
amantes. Foi um dia ter com o barão e disse-lhe em grande segredo:
“Senhor, não o ignorais: desde a assembléia do Mau Passo que o rei vos
tomou ódio. E, todavia, a rainha fez um juramento falso! Tristão, que se
devia exilar, violou a promessa e esconde-se não longe daqui. Mais de
uma vez, durante a noite, se encontra e faz amor com ela no quarto das
mulheres, enquanto Brangia fica de atalaia e Gorvenal espera fora do
tapume. Quereis surpreendê-los em flagrante? Emboscai-vos no pomar
e içai-vos até o balcão da janela que dá para um angulo do jardim. Se
seguirdes os meus conselhos, não tardareis a ver Tristão aparecer, a
espada na bainha, o arco numa das mãos e duas flechas na outra.
Podeis acreditar-me, pois o vi com os meus próprios olhos.” “Quando
viste?” “Esta manhã, antes da alvorada; vê-lo-eis como eu se o
quiserdes. Que me dareis em recompensa?” “Vinte marcos de prata,
pelo menos, e, se não mentiste, far-te-ei ainda mais rico.” “Prestai
atenção — disse o devasso. — A janela alta a que me referi está
encoberta com uma tapeçaria de seda. Entrai no pomar, lá para o fim
da noite, escalando o tapume, e içar-vos-eis sem custo a um rebordo do
balcão. Tende o cuidado de vos munir de uma vara bem aguçada, que
espetareis na tapeçaria. Assim, afastá-la- eis suavemente, a fim de ver o
interior. Consinto em ser queimado vivo se, por essa abertura, não
contemplares um belo espetáculo!”
Gondoïne deu parte da noticia a Denoalen, seu compadre, e
comunicou-lhe a vontade de tentar em primeiro lugar essa aventura, no
dia seguinte; Denoalen arriscá-la-ia depois. Resolvida a questão,
separaram-se alegremente, pois julgavam-se certos de confundir
Tristão. A rainha não suspeitava nada das suas intrigas e, como o rei
devia partir para a caça pouco depois da meia-noite, enviou Périnis a
Tristão para lhe dizer que podia vir passar a seu lado as últimas horas
da noite. A Lua brilhava ainda quando ele deixou o refúgio: pôs-se a
caminho através dos bosques que o separavam do castelo. Rastejando
pela mata, avançava com prudência, pois estava sempre a temer uma
armadilha. Subitamente, ao desembocar de uma moita de espinheiros,
viu Gondoïne avançando ao longo de um atalho. Tristão atirou-se para
a espessura do matagal. “Meus Deus, fazei que ele não me veja antes de
estar ao meu alcance!” E, a espada desembainhada, estava pronto a
atacar, mas Gondoïne fez um desvio por outro atalho. Tristão lançou-se
em vão ao seu alcance: o traidor avançara muito e já estava fora de
suas vistas.
Tristão retomara a marcha através do matagal quando surgiu
Denoalen, precedido por dois galgos e montado num cavalo negro. O
bravo, dissimulado atrás de uma macieira, esperou-o. O outro
apressava-se a alcançar os cães que enviara à frente para espantarem
um javali. Mal o homem ficou suficientemente próximo, Tristão tirou o
casaco e, com um salto, colocou-se à sua frente. O traidor quis fugir:
quase nem teve tempo para soltar um grito de pavor, pois Tristão
decepou-lhe a cabeça com a espada. Depois, cortou-lhe as longas
tranças e meteu-as nos calções: levá-las-ia a Isolda para melhor se
regozijar com ela da morte do traidor. Limpou a espada na erva, meteua
na bainha e arrastou um pesado tronco para cima do corpo
ensangüentado do inimigo.
Os primeiros clarões do dia afugentavam já as trevas. Tristão
apressava-se agora a atingir a habitação da rainha. Gondoïne havia-selhe
antecipado. No rebordo do balcão, afastara ligeiramente a tapeçaria
com uma vara de ponta afiada e via do alto o interior do quarto das
mulheres todo juncado de gladíolos. Primeiro só avistou Brangia, que
ainda segurava o pente de marfim com o qual penteara a rainha. Isolda
entrou pouco depois, um castiçal na mão, ajustando as vestes.
Finalmente, Tristão transpôs a soleira, o casaco desapertado, trazendo
numa mão o arco de alburno e na outra duas longas tranças ruivas.
Quando a rainha ia ao seu encontro, viu, perfilada na cortina, a sombra
da cabeça de Gondoïne. “Querida — disse Tristão —, trago-vos um rico
presente: são as tranças de Denoalen. Cortei-lhe o pescoço; nunca mais
usará a lança ou o escudo.” “Muito obrigada, louvado seja Deus! Mas
concedei-me mais alguma coisa!” “O quê?” — perguntou Tristão.
“Gostaria que retesásseis o arco para ver como o fazeis., Tristão,
surpreendido, hesitou um momento sem compreender. Depois, retesou
o arco com todas as forças. Então Isolda disse-lhe ao ouvido: “Amor,
armai uma flecha: avisto lá em cima, na tapeçaria, a sombra de uma
cabeça que não me agrada nada! E agora, visai com precisão!” Tristão
ergueu o olhar para a janela e reconheceu o rosto do inimigo, cuja
sombra se recortava na tapeçaria.
Deus — pensou —, se sou verdadeiramente um hábil arqueiro, faz
com que não falhe!” Visou tranqüilamente e atirou: a flecha voou mais
rápida que o esmerilhão, atingiu com toda a força o olho de Gondoïne e
alojou-se-lhe no crânio. o traidor morreu no mesmo instante e o corpo
caiu para trás do lado do pomar. Isolda, impressionada, pegou na mão
de Tristão: “Doce amor — disse-lhe —, não há dúvida de que nos
podemos regozijar! Denoalen e Gondoïne já não existem, não virão mais
perturbar a paz entre o rei Marcos e eu, e prejudicar o nosso repouso. O
fiel Périnis enterrará este corpo na floresta.”
Todavia, apesar da embriaguez da vingança, só experimentaram,
nessa manhã, um prazer misturado com inquietação e amargura:
sentiam mais do que nunca como a sua felicidade era frágil e sempre
ameaçada. Quando Tristão se preparou para partir, Isolda disse-lhe:
“Por certo que temos hoje menos dois inimigos, o que é muito, mas
restam na corte o duque Audret, Kariado e bastantes invejosos ou
indiscretos para espiarem as nossas idas e vindas. Mais cedo ou mais
tarde, encontrarão na floresta o corpo decapitado de Denoalen e todos
compreenderão que foste tu quem o matou; se Gondoïne desapareceu,
só tu o pudeste suprimir. Desde agora o teu refúgio não mais poderá ser
dissimulado. Para tua e minha salvação, tens de fugir para longe
daqui.” “Querido amor — respondeu Tristão —, partirei então, uma vez
que é essa a tua vontade. Prefiro afastar-me de ti a ver-te viver, por
minha culpa, na incerteza e na angústia. Mesmo que a tua imagem se
pudesse apagar um único instante do meu coração, o teu anel de jaspe
verde fá-la-ia renascer imediatamente: bem sabes que ao teu primeiro
apelo virei ter contigo.” Tristão beijou-a uma última vez e, com o
coração oprimido, foi juntar-se a Gorvenal, que o esperava no bosque.
XXVII
AS FOICES SANGRENTAS
DESTA vez, Tristão deixou Tintagel com o pensamento de que não
voltaria tão cedo, e talvez até nunca mais. Era não contar com a
estranha aventura que devia, contra as suas previsões, trazê-lo de volta
alguns dias mais tarde. Tomara com Gorvenal o caminho que levava ao
reino de Gavoie Depois de terem atravessado a Charneca Branca e o
vau do Mau Passo, os dois homens ladeavam a orla de uma floresta
quando encontraram um grupo de monteiros do rei Artur e, entre eles,
vários companheiros da Távola Redonda. Gauvain, sobrinho de Artur, e
Keu, o senescal, fizeram bom acolhimento a Tristão, de quem
conheciam a fama das proezas e das desventuras. “O quê? —
perguntaram-lhe. — Ainda errais pelos bosques com um único
escudeiro? O rei Marcos não pôs fim ao vosso exílio? Não devia deixarvos
voltar para a corte mal a rainha se justificasse em juramento na
presença de Artur e na nossa?” “Que querem, senhores? — respondeu
Tristão. — Os meus inimigos, e o duque Audret mais que os outros, têm
demasiado poder na corte sobre o espírito do rei para que o meu tio
consinta acolher-me de novo junto de si. As suspeitas e a angústia
apoderaram-se da sua alma e não sei se alguma vez se libertará delas.
Presta à rainha todas as honras e trata-a com grande deferência, mas
ainda não levantou até hoje a sentença de exílio que aplicou contra mim
no dia em que lhe restituí Isolda.” “Querido senhor Tristão — continuou
o senescal Keu —, agradava-vos rever a rainha uma vez mais, antes de
vos exilardes numa terra longínqua? Vinde conosco: iremos caçar perto
de Tintagel e, chegada a noite, fingindo termo- nos perdido, pediremos
hospitalidade ao rei. Estareis conosco como um dos monteiros,
encarregado de preparar e conduzir a matilha. Assim, nessa vestimenta,
podereis aproximar-vos da rainha e conversar com ela.”. Muito
obrigado, senescal — respondeu Tristão. — Uma vez que me ofereceis
essa boa aventura, não a posso recusar. Conheço umas ervas mágicas
que modificarão a cor e os traços do meu rosto, de modo que o próprio
rei Marcos não me poderá reconhecer.” Gorvenal em vão qualificou esse
projeto de insensato e jurou por todos os deuses que não seguiria
Tristão nessa louca aventura: de nada adiantou e, no dia seguinte, o
plano foi executado.
Marcos, o cortês, o generoso, acolheu bem Gauvain, o senescal
Keu e todos os monteiros. Recebeu-os à mesa albergou-os no quarto
real. Esse aposento era vasto e alto, coberto por um teto de fortes vigas
e de ricos lambris; o chão era de terra batida, mas todo juncado de
gladíolos. Porém, no meio do alegre tumulto do festim, Marcos estava
inquieto e perturbado no intimo, tanto mais que acabara de tom ar
conhecimento do assassínio de Gondoïne e de Denoalen e bem sabia
que só Tristão podia ser o autor. Atormentado pelos ciúmes, assustavao
sentir rodar à volta da bela Isolda os desejos de todos os caçadores.
Mandou chamar três servos e ordenou-lhes que espetassem em circulo,
no chão do quarto, à volta das camas vizinhas do rei e da rainha,
laminas de foices recentemente afiadas, como colocavam nas
armadilhas para lobos; gladíolos deviam dissimular o gume das foices,
de modo que, se alguém se tentasse aproximar, a favor das trevas, do
leito da rainha, ferir-se-ia cruelmente nas pernas e seria obrigado a
fazer marcha atrás. Os três servos espetaram as foices como o rei
mandara.
Terminado o festim, vieram os ditos alegres depois de beber; um
pouco antes da meia-noite, o próprio Marcos conduziu Isolda até ao
leito, com medo que se magoasse nas laminas aceradas. Os convidados,
depois de se descalçarem e despirem, estenderam-se nas camas de tiras
de lona dispostas à volta do quarto. Quando todos adormeceram,
Tristão levantou-se sem ruído e procurou — o insensato! — juntar-se a
Isolda no leito. Não tardou a rasgar as pernas numa das foices, e teve
de rasgar os lençóis para estancar o sangue e atar as feridas. Keu, seu
vizinho, inclinou-se para ele e perguntou baixinho: “Que tendes? Como
vos magoastes?” “Senescal — murmurou Tristão —, foi o rei que, para
impedir que se aproximassem da mulher, mandou espetar foices no
chão do quarto.” “Infeliz — respondeu Keu —, ides ser descoberto! Essa
ferida far-vos-á reconhecer!” O senescal imaginou então um belo
estratagema: mandou transmitir, de uma cama para outra, ordem para
que todos os monteiros se levantassem bruscamente, descalços, e se
injuriassem uns aos outros como se discutissem. Um instante depois,
todos os caçadores corriam através do quarto gesticulando, soltando
gritos e lançando-se grosseiras provocações: todos se magoaram no
gume das foices e fizeram nas pernas profundos golpes. O rei Marcos,
despertado em sobressalto e não compreendendo nada da barulheira,
ordenou a Périnis que acendesse os candelabros. Um espetáculo
inaudito ofereceu-se então aos olhares: todos os convidados do rei
perdiam sangue em abundância e esforçavam-se por estancá-lo com
pensos improvisados. Todo o quarto estava ensangüentado. Só Keu, o
imaginador da artimanha, prudente e fino como de costume, conseguira
esquivar-se das foices, mas Gauvain, por gracejo, empurrou-o contra
elas, de modo que se feriu mais gravemente que os outros. Então Keu
teve uma nova inspiração. Na desordem geral, começou a gritar com voz
forte: “Andam lobos nesta sala, para que se disponham tais
armadilhas? É esta a hospitalidade de Marcos?” Que restava ao rei fazer
senão acalmar a contenda e desculpar-se por ter deixado pôr
armadilhas no seu próprio quarto? Enquanto cuidavam dos feridos,
Tristão, que já não corria o risco de ser reconhecido entre os feridos,
aproveitou para aproximar-se Lia rainha e dirigir-lhe algumas palavras.
De manhã, enquanto os homens de Artur voltavam para a
floresta, Tristão desceu até ao porto onde o fiel Gorvenal, aguardando o
seu retorno, se pusera em busca de um navio prestes a largar. Uma
nau de mercadores ia fazer-se à vela para a Pequena Bretanha;
combinaram o preço e embarcaram.
XXVIII
A MIRAGEM DA OUTRA ISOLDA
NESSE tempo reinava na Pequena Bretanha, à qual também
chamavam Armórica, um velho duque de nome Hoel, a quem o vizinho,
o conde Riol de Nantes, guerreava rudemente. O duque tinha um filho
chamado Kaberdin, bravo e cortês, e uma filha, bela e bem- educada, a
quem chamavam Isolda das mãos brancas. Tristão ofereceu os seus
serviços ao duque, que o aceitou, e tão bem fez, com a ajuda de
Kaherdin, que libertou várias cidades sitiadas pelo inimigo e obrigou o
conde Riol a implorar a paz.
Porque a filha de Hoel tinha o nome de Isolda e assemelhava-se
muito com a Isolda da Irlanda, Tristão deleitava-se a fitá-la. A donzela,
porque o via belo e valoroso, apaixonou-se por ele. Um dia em que
Tristão cavalgava com Kaberdin, começou a pensar em Isolda, a loura,
que deixara em Tintagel, e afundou-se num tão profundo devaneio que
já não sabia se dormia ou estava acordado. Kaherdin apercebeu-se
disso, mas não disse uma palavra, receando importuná-lo. Tristão,
mergulhado nos seus pensamentos, começou a cantar a meia-voz:
Isolda, minha força; Isolda, minha querida Em vós, minha morte, em
vós, minha vida!
Era o refrão de um lai bretão que compusera não há muito em
honra de Isolda, a loura. Quando saiu finalmente deste devaneio,
sentiu- se constrangido perante Kaherdin. O companheiro disse-lhe:
“Amigo, não é de bom senso pensar demais!” “Falas verdade —
replicou Tristão —, mas não é de admirar que o homem que tem o
coração em tormento por vezes se perca.” “Amigo — disse Kaherdin —,
vejo-te mais pensativo do que desejaria e creio bem que é por qualquer
dama ou donzela. Se te apraz confias-te a mim, não me pouparei a nada
para aliviar-te a dor.” “Vou dizer-to — continuou Tristão. — Amo tanto
uma bela chamada Isolda, para quem compus esta canção, que suspiro
por ela como podes ver. Se essa Isolda não existisse, desejaria deixar
este mundo.” Quando Kaherdin ouviu o nome de Isolda, julgou que
Tristão referia-se a sua irmã, pois nunca ouvira falar de outra Isolda e
teria muito prazer que Tristão se tornasse seu cunhado. Disse: “Tristão,
por que mo escondeste tanto tempo? Fica sabendo: se tivesse pensado
que querias a minha irmã, asseguro-te que não terias de sofrer uma
longa espera.” Tristão compreendeu que Kaherdin se enganara quanto
ao objeto dos seus sonhos, mas não ousou desenganá-lo, pois o seu
coração estava agitado por sentimentos diversos e o seu espírito
atravessado por pensamentos contraditórios.
A noite, sozinho no quarto, dirigia-se baixinho a Isolda, a loura,
como se esta estivesse presente: “Bela, como as nossas vidas são
diferentes! Na separação que suportamos, só há amargura para mim.
Perco por ti a alegria e o prazer que enchem os teus dias e as tuas
noites. A minha vida não passa de incessantes torturas, a tua de
encantamentos de amor. Só vivo para te desejar, ainda que só conheças
nos braços do teu marido gozo e voluptuosidade. O rei tem todo o vagar
para se deliciar contigo: o que foi o meu bem tornou-se a sua presa.”
Este pensamento fê-lo sentir tanta amargura que se apanhou a dizer:
“Sei bem as alegrias que Isolda tem: ela, por quem o meu coração
despreza todas as mulheres, compra o prazer com o esquecimento a que
me vota. E eis agora que sinto a amarga, angústia de me sentir desejado
por outra mulher; o amor ardente com que esta donzela me requer
torna ainda mais insuportável a dor de ser abandonado pela rainha. Se
a loura Isolda não se acautela, terei de renunciar ao que não posso ter:
encontrarei o apaziguamento neste novo amor. Em vez de suspirar pelo
impossível, restringirei as minhas forças às coisas acessíveis. Para que
eternizar um amor do qual não pode vir nenhuma alegria? Que Isolda, a
loura, ame o seu dono e senhor e fique com ele. Não a quero censurar: o
homem não deve odiar o que adorou, pode unicamente libertar-se,
afastar-se e desprender- se disso. Quero doravante esforçar-me, a
exemplo da loura Isolda, por apreciar o encanto que há nas carícias
sem amor. Mas como experimentá-lo senão casando com a jovem que se
enamorou de mim e que aspira a dar-me esse prazer?”
Tristão deseja Isolda das mãos brancas pela sua beleza, que era
como que um reflexo da de Isolda da Irlanda, e também pelo nome de
Isolda, que lhe recorda o primeiro amor: é a reunião do nome e da
beleza que lhe inspira o desígnio de tomar a jovem por mulher. O
sofrimento vem-lhe de uma Isolda, é de outra Isolda que espera a
consolação. Eis que mostra por ela tanto ardor, que tem para com os
seus parentes tantas belas palavras, que todos concordam em celebrar
o casamento.
No dia fixado, todos os preparativos estão terminados para as
núpcias: Tristão casa com Isolda das mãos brancas. O capelão celebra o
oficio, depois demoram-se num banquete de festa. Saem para
divertirem-se na música, no lançamento do dardo e na esgrima. O dia
passa com os prazeres, a noite está próxima; o leito nupcial está
preparado. A moça entra em primeiro lugar. Tristão despe a túnica,
mas, ao retirar a manga direita, ajustada ao punho, deixa escorregar do
dedo o anel de prata com engaste de jaspe verde que a rainha lhe dera
no dia da separação. O anel tilinta nas lajes com um som claro, Tristão
inclina-se para apanhá-lo e contempla-o longamente. Como por
encanto, a radiosa imagem de Isolda, a loura, surgiu diante de si e
encheu-o até ao mais fundo do ser de uma emoção indizível. O anel
mágico fez a sua obra. Recolocou diante dos olhos do amante a imagem,
um instante esfumada, da longínqua bem-amada. Um remorso insinuase-
lhe na alma e em breve a domina: arrepende-se da conduta e
absorve-se em amargas reflexões. Esse anel, que meteu no dedo,
rememora-lhe o pacto da mútua fidelidade concluído com Isolda na
hora do último adeus. Suspira do fundo do coração e diz para consigo
mesmo: “Eis que eu próprio me coloquei, por causa de um louco erro,
numa dura necessidade. O meu dever de marido é de me deitar ali, uma
vez que casei com esta donzela. As conveniências exigem que me
estenda ao lado dela: já é tarde para me retirar! Eis o belo trabalho do
meu coração demente, fútil e volúvel.”
Tristão deita-se, Isolda enlaça-o ternamente, beija-lhe a boca e a
face. Deseja ardentemente aquilo a que Tristão se recusa. Não é que
não esteja disposto a acariciar a sua jovem mulher, mas um amor
maior retém-no e faz calar o apelo dos sentimentos. A paixão por Isolda,
a loura, mais forte que nunca no seu coração, paralisa-lhe a vontade e
torna a natureza impotente. Vê que a jovem é desejável e ardente;
aspira a volúpias, mas o outro desejo é suficientemente forte para
dominar o instinto da carne: tudo cede àquele grande amor. E é para
Tristão um embaraço, um tormento, uma inquietação e uma angústia
não saber como se manter casto, que conduta ter com a mulher, a que
estratagema recorrer. Subtrai-se aos abraços da jovem esposa e ilude o
prazer que ela procura. Dá um único beijo a Isolda das mãos brancas e
diz-lhe: “Minha bela amiga, não tomeis isto por uma vilania ou um
ultraje. Quero fazer-vos uma confissão, pedindo-vos que a guardeis só
para vós, pois nunca a confiei a mais ninguém. Aqui, no meu lado
direito, tenho uma ferida que me afligiu longamente e que ainda esta
noite me atormenta duramente. As fadigas que suportei guerreando os
inimigos de vosso pai acordaram em mim a dor. Por causa dela, não me
posso entregar aos prazeres amorosos. Mas tê-los-emos quando o
quisermos.” Isolda respondeu-lhe: “Estou aflita, mais do que saberia
dizer, com o mal de que sofreis. Quanto à coisa de que me falais, quero
e posso muito bem passar sem ela esta noite.” Assim ficou Tristão,
durante toda a noite, estendido, sem se mover, ao lado da esposa. Ela,
que dos jogos do amor só conhecia os abraços e os beijos, adormeceu
com toda a simplicidade enlaçada a Tristão. Mas chegada a manhã,
quando as servas lhe ajustaram o véu das mulheres casadas, sorriu
tristemente e pensou que não tinha nenhum direito a ele.
XXIX
A AGUA ATREVIDA
ALGUNS meses após o casamento, Tristão e Isolda das mãos
brancas dirigiram-se, com Kaherdin, à peregrinação dos Sete Santos da
Bretanha. Kaherdin cavalgava à direita da jovem, que montava à
amazona, e Tristão à esquerda. Trocam mil ditos agradáveis, e o que
dizem absorve-os de tal modo que deixam ir os cavalos ao sabor do seu
capricho. Chegam acidentalmente a um pequeno curso de água quase
seco, que atravessam num vau atulhado de pedras. Menos dóceis que o
cavalo de Tristão, o de Kaherdin esquiva-se, o de Isolda empina-se; ela
esporeia-o; mas, ao elevar o tacão para esporeá-lo de novo, é-lhe
necessário abrir os joelhos e levantar o vestido, segurando-se com a
mão direita ao arção da sela. O palafrém avança, deixa-se cair sobre as
patas, mas escorrega numa pedra vacilante no meio do riacho.
Pousando a pata na pedra mal segura, o cavalo faz jorrar muito alto um
esguicho de água, que salta para debaixo do vestido de Isolda, entre os
joelhos. A jovem, apanhada pelo frio da água na carne, solta um grito e
desata a rir. Kaherdin, que a ouve, teme ter provocado a sua hilaridade
com alguma palavra risível ou algum gesto desajeitado. Um pouco
confuso, pergunta à irmã: “Ris com muita vontade, mas não sei por
quê. Que fiz eu para ficares nesse estado de alegria?” “Irmão —
responde —, não é de ti que rio e não te deves melindrar. Rio da
agradável aventura que acaba de me acontecer, quando o cavalo fez
saltar a água fria do vau para as minhas pernas. No momento em que
ela esguichou para debaixo do meu vestido, estremeci e disse a meiavoz:
“Água, és em verdade muito atrevida e foste mais longe entre as
minhas pernas do que foi a mão de algum homem, nem mesmo a de
Tristão!” Tristão fingiu não ter ouvido estas palavras e, dando às
esporas, ganhou avanço sobre os companheiros. Quanto a Kaherdin,
voltou-se para a irmã e perguntou-lhe: “Que me contais? Tristão não foi
mais atrevido contigo que a água deste riacho?” “Irmão, contei-te isso,
mas falei demais e estou arrependida.” Kaherdin, espantado, fez-lhe
tantas perguntas que ela acabou por lhe dizer a verdade sobre a noite
de núpcias. “Que significa isso? — interroga Kaherdin. — Não partilhais
a mesma cama, Tristão e tu, há vários meses, desde que estais
casados? Devo compreender que viveis afastados um do outro, como se
fôsseis monge e monja? Se Tristão não brinca contigo aos jogos do
amor, acho que te faz a pior das ofensas!” “Confesso-te, querido irmão,
que Tristão nunca me tocou: por vezes, antes de adormecer, ainda me
dá um beijo.” “Por Deus, minha irmã, Tristão enganou-nos e
decepcionou-nos gravemente, a ti e a toda a família. Se te desdenha, tão
pura e tão franca, é de certeza porque ama outra mulher. Ah!, se o
tivesse sabido mais cedo, nunca teria transposto a soleira do teu
quarto!” “Irmão, não o deves condenar sem primeiro o ouvir: Tristão é
leal e justo e tem, sem dúvida, razões para agir assim. Talvez te as
dissesse se o interrogasses?”
Kaherdin levou o cavalo até Tristão, que se afastara um pouco,
perdido em devaneios. Mas quando chegou à sua altura, e lhe ia falar,
ficou tão embaraçado que lhe faltaram as palavras para exprimir-se.
Sentia uma viva contrariedade e um alanceador cuidado, pois supunha
que o cunhado desprezara a irmã porque não queria ter um herdeiro
descendente da linhagem do duque Hoel. Kaherdin continuou a
cavalgar ao lado de Tristão, o rosto sombrio e o ar encolerizado, sem lhe
dirigir palavra nem responder às perguntas do amigo. Tristão afligia-se
por vê-lo de tão mau humor, ele que se mostrava habitualmente um
companheiro tão alegre!
Terminada a peregrinação, quando voltaram para o castelo de
Karhaix, Tristão chamou-o de parte e perguntou-lhe: “Amigo, por que
evitas qualquer conversa comigo? Em que é que te desagradei? Não é
próprio de um gentil-homem zangar-se com o melhor amigo sem lhe dar
uma explicação.” Kaherdin, dominando o furor, resolveu-se finalmente
a exprimir-lhe com franqueza os agravos que tinha contra ele: “Não sei
por que finges, Tristão, não saber o que te censuro; todavia, não ignoras
que tenho o direito de te odiar. Nenhum homem da minha linhagem
agiria de outro modo no meu lugar, e quando souberem o que eu sei,
detestar-te-ão como eu. Mediste o alcance da afronta que nos fizeste?
Casaste com a minha irmã em núpcias legitimas, de teu pleno agrado e
de tua livre vontade, e no entanto, vários meses decorreram sem que
tenhas consumado essa união. É claro que desdenhas unir-te a ela
porque desprezas a nossa família: não queres ter um herdeiro de minha
irmã. Declaro- te francamente: se não tivesses sido meu companheiro
de armas e meu amigo, ter-te-ia feito pagar caro essa injúria. Eis a
minha última palavra: se não reparas a tua falta e não tratas doravante
a minha irmã como tua verdadeira mulher, lanço-te o meu desafio, pois
tal ultraje só se lava com o sangue!” Tristão respondeu-lhe: “Irmão,
infelizmente, os agravos que tens contra mim são demasiado reais.
Compreendo-os e reconheço-lhes o fundamento. Dizes verdade: vim
para o meio de vós para vossa infelicidade. Se o mal secreto que
atormenta o meu coração não me tivesse alterado a razão e perturbado
o bom senso, nunca teria contraído esse casamento. Quando te tiver
revelado a minha miséria, talvez o teu furor se acalme. Fica, pois,
sabendo que amo com ardente amor outra Isolda, a mais bela de todas
as mulheres. Durante anos, viveu comigo e conhecemos a felicidade dos
amantes. Quando o infortúnio da minha vida obrigou-me a deixá-la,
prometi guardar sempre a sua recordação e ficar-lhe fiel, mas não
contara com o horrível tormento dos ciúmes que tortura o meu coração.
Desde que a restitui ao marido, persuadi-me a mim mesmo, no meu
delírio, que ela me votara ao esquecimento e que encontrava a alegria e
o prazer junto de outro. Insensato! Cedi à ilusão de me vingar
procurando, também eu, a alegria e o prazer junto de outra mulher, e é
por isso que, de boa-fé e sem pensar em mal, casei com a tua irmã. Ai
de mim! Desde a noite de núpcias que senti toda a extensão do meu
erro: sei agora que nunca me será possível unir-me carnalmente a outra
mulher que não seja aquela Isolda cuja existência acabo de te revelar.”
“Que grande piada me contas! — exclamou Kaherdin. — As tuas
palavras são engenhosas e sabes encontrar belos pretextos para
desculpar a tua falta. Julgas-me suficientemente ingênuo para dar
crédito a tais fábulas? A longíqua Isolda de quem falas, que é senão
uma quimera que forjaste a contento para acalmar a minha cólera?”
“Enganas- te, amigo; é uma mulher de carne e osso. Vive em Tintagel,
no reino da Cornualha, e o marido, a quem a entreguei, é o célebre rei
Marcos, cuja fama chegou, desde há muito tempo, até aqui. Já sabes
que sou filho do rei Rivalino de Leônis; pois fica sabendo agora que o rei
Marcos é meu tio, irmão de minha mãe, e que o único objeto do meu
amor é Isolda, a loura, filha de Gormond, rei da Irlanda, e mulher do rei
Marcos. Ousas ainda afirmar que são quimeras e vãs ilusões de um
espírito doente? “Kaherdin mergulhou com estas revelações num
estupor tão profundo que ficou muito tempo estupefato sem saber que
responder. Então Tristão retomou a palavra e contou-lhe
pormenorizadamente todo o mistério da sua vida. Disse-lhe como fora à
Irlanda pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a Isolda dos
cabelos de ouro; como no mar bebera, sem saber, e partilhara com
Isolda o filtro de amor que a rainha da Irlanda destinara ao rei Marcos
para a noite de núpcias; como, durante três anos, Isolda e ele estiveram
ligados um ao outro pela força invencível da bebida mágica. Narrou as
ciladas e os ardis do anão corcunda, a traição e as denúncias dos
barões traidores, a rainha levada à pira e entregue ao bando de
leprosos, a vida amarga e dura dos amantes na floresta selvagem, e
como restituíra Isolda ao rei Marcos após o fim do sortilégio e como
casara com Isolda das mãos brancas para tentar esquecer aquela que
permanecia para ele o verdadeiro e único amor. Acrescentou: “Se a tua
irmã, amigo, casou comigo para sua infelicidade, acredita que sofro
duplamente: por ela e por mim, que não a quis de modo algum ofender.”
Kaherdin ficou impressionado com o acento de sinceridade de Tristão e
compreendeu que dizia a verdade; teve piedade dele e, mudando de tom,
falou-lhe menos amargamente: “Tristão — disse —, há um instante
queria matar-te. Sinto agora que o meu furor se acalma e que a minha
amizade revive. Seguramente que, se estás ligado para sempre a outra
mulher por um amor tão poderoso, a minha irmã não pode pensar em
conquistar-te, pois qualquer partilha te seria odiosa. Se eu pudesse
verificar com os meus próprios olhos que a rainha da Cornualha te ama
com um amor sem par e que a sua beleza não tem igual, perdoar-te-ia,
por mais que me custasse, o mal feito a minha irmã.” “Só peço que mo
deixes provar-te — continuou Tristão. — Queres acompanhar-me à
Cornualha? Ai habita, no grande palácio do rei Marcos, a loura Isolda, o
meu único amor. Quando a vires, julgar-me-ás.”
Alguns dias mais tarde, Tristão e Kaherdin, reconciliados,
confiaram ao duque Hoel e a sua filha Isolda que haviam feito o voto de
ir a Inglaterra visitar os mosteiros onde se veneravam os túmulos dos
santos de outrora. Pegaram no bordão e no alforje de peregrinos e só
levaram com eles, com as mesmas vestes, Gorvenal e o escudeiro de
Kaherdin. Os quatro homens alcançaram a pé a beira-mar e arranjaram
lugar numa nau que os levou à Grã- Bretanha.
XXX
O MOCHO E O CORUJÃO
TRISTÃO enganava-se: Isolda não o votara ao esquecimento. É
verdade que o rei Marcos fazia-lhe uma vida fácil e brilhante e
mostrava-se atencioso e generoso, e ela lhe estava reconhecida; mas
nada disso apagara no seu coração a imagem de Tristão nem
enfraquecera o amor que lhe dedicava. Isolda, sozinha no quarto em
companhia do cão Husdent, que lhe lembrava sem cessar o amigo,
suspira por aquele que tanto deseja. O seu coração e o seu pensamento
têm um único objetivo: amá-lo. O que mais a aflige é que, desde a sua
partida, nunca mais teve uma noticia sua: ignora onde está e em que
pais, se está morto ou vivo. Está prostrada de tristeza e o seu espírito
está assombrado pelo horrível pensamento de que talvez o amado tenha
perdido a vida. Aguardara durante longo tempo que um mensageiro
viesse da sua parte; a espera fora vã. Forte e ousado como era, não teria
exposto o corpo numa aventura?
Havia na corte de Marcos muitas pessoas que estavam
informadas dos feitos de Tristão na Pequena Bretanha, mas, porque não
gostavam nada dele, escondiam a Isolda tais noticias, reservando- se o
direito de divulgar em todos os lugares o mal que sabiam por boatos;
por isso, Isolda evitava encontrar esses barões cornualhenses. Um dia.
no quarto, senta-se e, para melhor pensar no amigo, canta e toca na
harpa um lai bretão que fora composto por ele. Conta como Guiron foi
surpreendido e morto pelo marido da dama que amava acima de tudo,
como, manhosamente, o ciumento deu a comer à mulher o coração de
Guiron e como esta sofreu uma dor indescritível. A rainha canta
docemente: harmoniza a voz com a harpa. As mãos são belas, o poema
é comovente e o tom grave. Aparece então Kariado, aquele rico conde de
alta linhagem que fora outrora companheiro de Tristão e o primeiro a,
levado pela inveja, denunciar ao rei os amores do sobrinho e da rainha.
Desde então, Kariado nunca mais cessara de cortejar Isolda, embora
esta o tenha sempre repelido com desprezo. Se não fizera causa comum
com os barões traidores, fora unicamente para não atrair a inimizade
aberta da rainha, pois conservava sempre a esperança de conquistá-la
com os seus galanteios e obter os seus favores. Quanto a Tristão, seu
antigo companheiro, não perdia o ensejo de manifestar a sua
malevolência e regozijava-se com as provações que o oprimiam. Uma vez
mais, Kariado deixara o seu belo castelo e as terras férteis; viera a
Tintagel na intenção de obter o amor da rainha. Isolda considerava as
suas pretensões pura loucura; desde que Tristão saíra do pais, o
galante perdera o tempo a cortejá-la sem nunca obter nada. Era um
belo senhor, cortês, altivo e orgulhoso, mas valia mais nos quartos das
damas que na batalha; era, além disso, belo e bom conversador e fino
contador de histórias.
Encontrou Isolda cantando o lai de Guiron, e como sabia muito
bem que era Tristão o autor aproveitou para fazer, em tom de gracejo,
desagradáveis alusões à possível morte do sobrinho de Marcos:
“Senhora — disse —, eis um canto bem sinistro, onde só se fala de
assassínio e de sangue! Pode dizer-se que é o canto do mocho, uma vez
que, como é crença comum, o canto desse pássaro pressagia um
falecimento. Deduzo que vai ser em breve questão de morte de homem.
Além do mais, o vosso lai, na minha opinião, anuncia a morte do
próprio mocho, isto é, do cantor que compôs esse lai.” Isolda
respondeu-lhe: “Falais verdade: o meu canto pressagia a morte da ave.
mas o mocho ou o corujão sois vós que cantais para pesar dos outros;
deveis antes temer a vossa morte, se receais que o meu canto seja de
mau agouro. Aposto que me trazeis hoje, como é vosso hábito, uma
noticia má: comportais-vos exatamente como o corujão. Posso afirmar
que nunca me contastes novas das quais tenha tirado satisfação e
nunca aqui viestes sem anunciar desgraças. Nem sequer teríeis deixado
a vossa casa se não tivésseis uma coisa desagradável para contar. Vós,
Kariado, nunca tivestes a menor vontade de partir para longe a fim de
realizardes feitos que vos trouxessem fama. Nunca se ouvirá sobre vós
uma única noticia de que os vossos amigos se possam honrar ou com a
qual fiquem contristados aqueles que vos odeiam. Estais sempre
disposto a dizer mal das ações de outrem, mas das vossas nunca se
falará.” Kariado replicou então: “Senhora, eis-vos encolerizada sem que
eu saiba por quê. Seria bem louco se receasse a morte que me agourais;
isso não me importa absolutamente nada. Dizeis que sou o corujão;
poderia responder- vos que sois o mocho e que ambos são pássaros de
má sorte. Contudo, corujão ou não, é uma dura noticia que vos trago
sobre o vosso amigo Tristão: está perdido para vós, pois casou noutra
terra. Doravante servos-á licito apelar para outrem, já que ele desdenha
o vosso amor. Casou em núpcias legitimas com outra Isolda, a filha do
duque Hoel da Bretanha.” Isolda respondeu com irritação: “Sempre
fostes corujão para dizer mal de Tristão. Que Deus me prive de todos os
seus bens se não me tornar mocho para vós! Destes-me uma má
noticia, não vos darei melhor. Declaro-vos, procurais o meu amor
inutilmente, nunca obtereis de mim o menor favor e, durante a minha
vida, nunca vos amarei nem aos vossos galanteios. Teria procurado
uma aventura bem funesta se, há pouco, tivesse aceitado o vosso
serviço. Mais vale perder o amor de Tristão a ganhar o vosso!”
Experimenta um violento furor e Kariado não se ilude. Sente que seria
contrário aos seus interesses avivar com outras palavras a angústia da
rainha: despede-se e afasta-se.
A rainha fica sozinha, atormentada por uma grande aflição.
Tristão perjurou. Tristão! Será possível? Gostaria de se assegurar da
verdade do fato, mas está de tal modo ferida e humilhada no seu intimo
que não se ousa confiar a ninguém, nem mesmo a Brangia, a sábia,
nem ao franco Périnis.
XXXI
O REENCONTRO DOS AMANTES
PARA Tristão e Kaherdin, vogando para a Cornualha com os
escudeiros, o vento foi ligeiro e bom. Desembarcaram uma manhã,
antes da aurora, não longe de Tintagel, numa enseada deserta vizinha
do castelo de Lidan. Tristão sabia que Dinas de Lidan, o bom senescal
do rei Marcos, o albergaria e saberia esconder a sua vinda. De
manhãzinha, os quatro companheiros subiam para Lidan quando viram
chegar atrás deles um homem que seguia o mesmo caminho a passo no
cavalo. Esconderam-se nos bosques e o homem passou sem os ver, pois
dormitava na sela. Tristão reconheceu-o: “Irmão — disse baixinho a
Kaherdin —, é o próprio Dinas de Lidan. Dorme: sem dúvida que volta
de casa da amante e ainda sonha com ela. Não seria cortês acordá-lo;
sigamo-lo de longe.” Alcançou Dinas, pegou docemente nas rédeas do
cavalo e caminhou sem ruído a seu lado. Finalmente, um passo em
falso do cavalo despertou-o. Abriu os olhos, viu Tristão, hesitou um
instante e exclamou: “És tu! És tu, Tristão! Deus abençoe a hora em
que te revejo: esperei- te durante tanto tempo!” “Amigo, Deus te salve!
Que novas me contais da rainha?” “Infelizmente, duras notícias. Desde
a tua partida para o exílio que suspira e chora por ti. Ah!, por que voltas
para junto dela? Queres ainda provocar a tua morte e a sua? Tristão,
tem piedade da rainha, deixa-a descansada!” “Amigo — disse Tristão —,
concede-me um dom: esconde-me em Lidan e leva- lhe a minha
mensagem. Faz que a possa rever uma vez, uma única vez!” Dinas
respondeu: “Tenho piedade da minha senhora e só te faço o recado se
souber que te continua a ser cara acima de todas as mulheres. “Ah!,
senhor, diz-lhe que ainda é meu único amor, e será verdade.” Segue-me
então, Tristão: ajudar-te-ei na tua necessidade.”
Em Lidan, o senescal hospedou Tristão e Gorvenal, Kaberdin e o
escudeiro. Quando Tristão lhe contou ponto por ponto as infelizes
núpcias com Isolda das mãos brancas, Dinas foi a Tintagel saber
noticias da rainha. Contaram-lhe que daí a três dias o rei Marcos e a
loura Isolda, com todos os escudeiros e os monteiros, deixariam
Tintagel para instalarem-se no castelo de Lancien. Quando Tristão
soube disto, confiou ao senescal o anel de jaspe verde e a mensagem
que devia levar à rainha.
Dinas voltou a Tintagel, subiu os degraus e entrou na sala. O rei e
Isolda estavam sentados a jogar xadrez. Dinas tomou lugar num
escabelo perto da rainha, como que para observar o seu jogo e, por
duas vezes, fingindo designar as pedras, pousou a mão no tabuleiro. A
segunda vez, Isolda reconheceu-lhe no dedo o anel de jaspe. Então,
perdeu a vontade de jogar. Deu um ligeiro encontrão ao braço de Dinas,
de sorte que várias peças caíram em desordem. “Vede, senescal — disse
—, baralhastes de tal modo o meu jogo que não saberia continuá-lo.”
Marcos deixa a sala, Isolda retira-se para o quarto e Brangia leva Dinas
até junto dela: “Amigo, sois mensageiro de Tristão?” “Sim, rainha; está
em Lidan, escondido no meu castelo.” “Ê verdade que casou-se na
Bretanha?” “Rainha, nesse ponto disseram-vos a verdade. Mas ele
assegura que, a despeito desse casamento, que aliás nunca consumou,
não vos traiu de modo algum; que nem um único dia cessou de vos
amar acima de todas as mulheres; que morre se não vos vê, nem que
seja só uma vez. Suplica-vos que consintais, pela promessa que lhe
fizestes no dia em que vos restituiu ao rei.” A rainha manteve-se
durante algum tempo calada, pensando com desagrado na outra Isolda
em quem não podia impedir-se de ver uma rival. Finalmente,
respondeu: “Sim, no dia em que se separou de mim, após o nosso exílio
na floresta, recordo-me de ter dito: Se alguma vez revir o anel de jaspe
verde, nem torre, nem fortaleza, nem proibição real me impedirão de
cumprir a vontade do meu amigo, seja sensatez ou loucura...” “Rainha,
daqui a dois dias a corte deve deixar Tintagel para instalar-se em
Lancien; Tristão manda vos dizer que estará escondido numa moita ao
longo do caminho. Suplica-vos que vos apiedeis dele.” “Já o disse: nada
me impedirá de cumprir-lhe a vontade.”
Dois dias depois, enquanto toda a corte de Marcos preparava-se
para a partida, Tristão e Gorvenal, Kaherdin e o escudeiro puseram-se a
caminho do local designado por atalhos secretos. Através da floresta,
duas estradas levavam de Tintagel a Lancien: uma bela e bem
arranjada, por onde devia passar o cortejo, a outra pedregosa e
abandonada. Tristão e Kaherdin postaram nesta os dois escudeiros e
ordenaram-lhes que os esperassem nesse local com os cavalos e os
escudos, enquanto eles próprios meteram-se pelos bosques e
esconderam-se numa moita de espinheiros. Em breve o cortejo aparece
na estrada. Vem primeiro o séquito do rei Marcos. Vêm, em boa ordem,
os peleiros e os ferreiros, os cozinheiros e os copeiros reais, vêm os
moços dos cães trazendo galgos e cães de caça, depois os falcoeiros
levando as aves no punho esquerdo, depois os monteiros, depois os
barões e os homens de armas. Avança, então, o cortejo da rainha. As
lavadeiras e as camareiras reais vêm à cabeça, seguem-se as mulheres
e as filhas dos barões e dos condes. Finalmente, aproxima-se um
palafrém montado pela mais bela que Kaberdin jamais viu: é bem feita
de corpo e de rosto, as ancas são um pouco baixas, as sobrancelhas
bem traçadas, os olhos risonhos, os dentes pequenos; cobre-a um
vestido de cetim vermelho. “Ê a rainha” — diz Kaherdin em voz baixa.
“A rainha? — exclama Tristão. — Não, é Brangia, a criada!” Mas numa
clareira luminosa que fazia o sol através das grandes árvores, Isolda, a
loura, apareceu, com o duque Audret à sua direita. Estava vestida de
brocado, os longos cabelos de ouro enquadrando o rosto de tez clara, a
cabeça ligeiramente inclinada, como se a tornasse pesada um grave
cuidado. “Desta vez — disse Tristão a mela voz —, é a rainha!” Kaberdin
contemplava-a fixamente, e tal era o seu encantamento que ficou
boquiaberto. A partir desse instante não mais duvidou da palavra que
Tristão lhe dera. Nesse momento, da moita de pilriteiros onde estavam
os dois companheiros elevaram-se cantos de toutinegra e de cotovia, e
Tristão punha nestas melodias toda a sua ternura. A rainha reconheceu
a voz do amigo. Então, volta-se para o maciço de espinheiros e diz em
voz alta: “Pássaros deste bosque, que me deleitastes com as vossas
canções, tomo-vos ao meu serviço. Enquanto o meu senhor Marcos
cavalga até Lancien, quero regressar a Tintagel, pois esta viagem fatigame.
Pássaros, escoltai-me até lá! Esta noite recompensar-vos-ei
largamente, como a bons menestréis.” Tristão ouve estas palavras e
alegra-se. Depois Isolda mandou chamar Brangia e falou-lhe em
confidência: “Amiga, o coração diz-me que Tristão não está longe e que
daqui a pouco cessarão as minhas angústias. Quando estivermos de
retorno a Tintagel, vigia a porta. É possível que tente vir ter comigo sob
algum disfarce. Saberás reconhecê-lo e levar-mo-ás em segredo.”
Exausto por ter corrido a planície em perseguição da caça, o rei
mandara erguer os pavilhões numa pradaria e repousava. O duque
Audret juntara-se a ele enquanto a rainha regressava a Tintagel. A noite
caiu, negra e sem lua. Tristão e Kaherdin dirigiram-se para o castelo.
Tristão sabia que Isolda compreendera a sua mensagem e não duvidava
de ser bem recebido. Debaixo da capa de peregrino, trazia uma túnica
de seda, calções bem ajustados e a espada embainhada. Chegados ao
pé das muralhas, os dois companheiros avançaram até ao fosso e
chamaram o porteiro: “Senhor, tende piedade de dois peregrinos que
pedem asilo para a noite e, se for possível, alguma comida.” Abriramlhes
a porta, pois era costume em Tintagel dar esmola aos piedosos
viajantes e conceder-lhes hospitalidade. Mal os estrangeiros
transpuseram a grade de ferro, Brangia avançou para eles; pegou na
mão de Tristão e, sem uma palavra, levou-o através das galerias
obscuras até ao quarto das mulheres. Tristão, apesar do disfarce, não
teve de mostrar o anel. Isolda, que o esperava, atirou-se-lhe aos braços
e ficaram longamente enlaçados. Em seguida, fê-lo sentar ao pé dela e
pediu-lhe que lhe contasse a sua vida desde que se haviam separado.
Esquecendo tudo o que não era o seu amor, abandonaram-se à alegria
como se estivessem reunidos para sempre. Quando chegou a
madrugada, Brangia, a prudente, que fizera companhia a Kaherdin
durante a noite, fez sair os dois homens do castelo por uma porta
secreta. Os amantes não contavam com a malícia dos inimigos. O
duque Audret, cujo ódio por Tristão não diminuíra, admirara-se com o
estranho comportamento de Isolda ao dirigir-se aos pássaros da
floresta, com a sua conversa confidencial com Brangia e com o seu
brusco regresso a Tintagel. Como conhecia de longa data o virtuosismo
de Tristão ao imitar o canto dos pássaros, não demorou muito a
suspeitar que Tristão regressara à Cornualha e que a rainha não
tardaria a ir ter com ele. Entrou no pavilhão onde repousava o rei e
disse: “Sire, passam-se coisas estranhas. Apesar da promessa, Tristão
voltou. Vai tentar ver a rainha e ela recebê-lo-á, pois nunca cessaram
de se amar. Ela está prevenida do seu retorno e sei que se prepara para
recebe-lo em Tintagel, em companhia de Brangia e de Périnis, que
sempre foram seus cúmplices. Rei, pensai em defender a vossa honra!
Enquanto vós vos afastais para o passatempo da caça, Isolda e o vosso
sobrinho entregam-se ao passatempo do amor.” Marcos escutou-o, mas
hesitava em acreditá-lo, pois Isolda havia- lhe fornecido toda a garantia
da sua lealdade e Tristão, segundo o que lhe haviam dito, guerreava do
outro lado do mar. Também não queria interromper o seu prazer, pois
dispunha-se a caçar as aves aquáticas com a ajuda de falcões
sabiamente treinados.
Após uma ausência de dois dias, Audret estava de regresso à
tenda do rei. “Sire, o meu pressentimento não me enganou. Corri até
Tintagel e testemunhei a traição de Isolda. Todas as noites Tristão bate
à porta, disfarçado de peregrino. A impudente Brangia condu-lo
secretamente ao quarto da rainha. Nada mais vos direi, a não ser que
esta noite os podereis surpreender.” Marcos levantou-se de um salto e
disse a Audret: “Sobrinho, agradeço-te a vigilância. Se falaste verdade,
receberás tal recompensa que nada mais poderás desejar. Ordena aos
meus lacaios que desarmem as tendas. Manda selar os cavalos, parto
contigo.” Andaram tão depressa que chegaram a Tintagel antes da
noite. No decurso dessa cavalgada silenciosa, o rei ainda duvidava da
veracidade das palavras de Audret.
Mal chegou, Marcos quis informar-se ele próprio e mandou
chamar Brangia, que, terrificada com as ameaças, pensava ele, não
poderia deixar de revelar tudo. Esta não se fez esperar e veio, a fiel,
fingindo a maior surpresa. “Menina — disse o rei —, respondei
francamente. Se mentirdes, o vosso corpo será queimado e as cinzas
espalhadas ao vento. Corre o boato de que Tristão voltou, apesar da
minha proibição, e que a rainha, esquecendo o seu dever, o recebe nos
seus aposentos durante a noite. Dizei-me como tal aconteceu, pois, se
sou traído pelo meu sobrinho, a minha vingança será sem piedade.”
Brangia sorriu com este discurso e respondeu sem se impressionar:
“Sire, devo-vos obediência e respeito. Quando a vossa honra está em
perigo, não tenho o direito de me calar. No mesmo instante em que me
haveis chamado, ia por minha própria iniciativa advertir-vos do que se
trama. ~ verdade, senhor, que Isolda se aborrece, porque desde há
quase uma semana que a negligenciais. Quarto vazio faz dama louca,
diz o vilão, e presa fácil tenta o ladrão. Se não vos acautelais, ela julgarse-
á abandonada e cometerá algum disparate. Imaginais que, afastando
Tristão, suprimis todo o perigo, mas ele nunca a amou. Aquele que a
procura com insistência é Kariado, o rico conde. Deu-lhe tão belos
presentes, gabou-lhe tanto a graça e a beleza, que pouco faltou para ela
sucumbir. Juro-vos que, se não traiu a fidelidade que vos deve, foi
graças aos meus cuidados e conselhos. Kariado, sire, é belo, cortês e
cheio de astúcia; sabe dizer as palavras que agradam a Isolda e
adivinhar os seus desejos. ~ espantoso que ela ainda não tenha
cometido nenhuma loucura com esse galanteador que a persegue. O
pobre Tristão não é perigoso. Deixai-o em paz e desconfiai de Kariado.”
Marcos respondeu-lhe: “Não me recuso a acreditar-te, mas Tristão não
infringiu a minha proibição voltando para cá?” “Sire, dizem-no, e é
possível, mas a rainha nunca mais o quer ver e encarregou Kariado de o
afastar se tornasse a aparecer. Receio mesmo que esse traidor, levado
pelos ciúmes, lhe arme uma cilada. Conheço melhor que ninguém os
erros e defeitos de Tristão, mas não seria um grande pecado se Kariado
o matasse?” O rei ficou perplexo, pois Tristão permanecia-lhe querido.
Mas que fazer para salvá-lo? A falta de melhor, seguirá o conselho de
Brangia: “Querida amiga — disse —, aceito as vossas razões e nada
tentarei contra Tristão. Mas expulsarei da corte Kariado, esse velhaco
que me quer enganar. Quanto a vós, não percais de vista a rainha e
vigiai-a sem cessar. Não quero que tenha, com quem quer que seja,
encontros secretos. Coloco-a sob a vossa guarda e dela me dareis
conta.” Sem tardar, a moça correu até junto da ama e contou-lhe a
conversa que tivera com o rei.
A noite, quando Tristão se apresentou à porta do castelo, disselhe:
“Um grande perigo ameaça Isolda. O rei está informado do vosso
regresso; doravante, livrai-vos de vos aproximar do castelo antes de a
noite ter caído e sem precauções; e que os escudeiros, para passarem
despercebidos, se dissimulem de todos os olhares num canto afastado
da floresta!”
XXXII
O PECADO E A PENITÊNCIA DE ISOLDA
O DUQUE Audret, persuadido do regresso de Tristão, mantinha
espiões para saber o que se tramava no palácio. Soube assim que
Brangia todas as noites ia encontrar-se com um desconhecido. Numa
noite, Audret até quase o surpreendeu com a serva: era Kaherdin.
Conseguiu escapar-se, mas Audret entreviu, na sombra, outro homem
que sala dos aposentos da rainha; era Tristão, certamente. Resolveu
apoderar-se dele. No dia seguinte, pôs-se à sua procura, acompanhado
por uma pequena escolta. Por infelicidade, o acaso conduziu-o direto ao
bosquezinho perto do castelo onde estavam escondidos Gorvenal e o
escudeiro de Kaherdin com os cavalos e as armas dos senhores. Como
os dois homens tinham a cabeça coberta com um elmo de viseira,
Audret tomou-os por Tristão e pelo desconhecido que por pouco não
surpreendera com Brangia. Mal viram Audret aproximar-se deles, os
escudeiros puseram-se em fuga e afastaram-se o mais depressa
possível. Audret gritou-lhes com todas as forças: “A vós a vergonha,
covardes! Escondeis-vos como poltrões!” Depois, dirigindo-se àquele que
julgava ser Tristão: “Pára, Tristão! Esconjuro-te em nome do teu valor!”
Os dois fugitivos nem se voltaram. Então Audret continuou: “Pára,
Tristão! Esconjuro-te em nome de Isolda, a loura!” Renovou duas vezes
esta adjuração em nome de Isolda, a loura. Em vão: os dois homens não
diminuíram a velocidade e acabaram por desaparecer na curva de um
caminho. Os homens do duque Audret só conseguiram apanhar um dos
cavalos que os escudeiros levavam pelas rédeas e trouxeram-no Para o
castelo de Tintagel.
Mal encontrou a rainha, Audret disse-lhe: “Senhora, sei agora que
Tristão regressou a este país. Avistei-o perto daqui, num bosque, em
companhia de um desconhecido. Ambos se puseram em fuga por um
velho caminho abandonado. Por três vezes o intimei a parar
esconjurando-o em nome de Isolda, a loura, mas ele amedrontou-se e
não ousou esperar por mim.” “Sire Audret, falais mentira e loucura!
Nunca me fareis crer que Tristão, esconjurado em meu nome por três
vezes, não tenha parado e não tenha ousado fazer-vos frente!” “No
entanto, foi ele quem eu vi! Até me apoderei de um dos cavalos: podeis
avistá-lo, todo aparelhado, lá embaixo no pátio.”
Com isto, Audret despediu-se da rainha, que deixou
completamente desamparada. Começou a chorar e disse: “Infeliz, vivi
demasiado, pois vi o dia em que Tristão me despreza e amaldiçoa.
Outrora, esconjurado em meu nome, que inimigo não defrontaria? É
ousado e valente: se fugiu diante de Audret e se se recusou a obedecer à
tripla esconjuração que lhe era feita em meu nome, é porque a outra
Isolda o possui e já não faz, na realidade, nenhum caso de mim!
Todavia voltara e eu recebera-o com alegria. Ora, não lhe bastou trairme,
quis desonrar-me também! Não estava eu farta dos meus tormentos
antigos? Que volte, pois, por sua vez amaldiçoado, para Isolda das mãos
brancas!” A rainha chamou Périnis, o fiel, e repetiu-lhe as notícias que
Audret lhe trouxera: “Amigo Périnis, procura Tristão na estrada
abandonada que vai de Tintagel a Lancien. Dir-lhe-ás que não o saúdo e
que não seja tão audacioso que ouse doravante aproximar-se de mim,
pois fá-lo-ei expulsar pelos sargentos e lacaios.” Périnis põe-se
imediatamente à procura de Tristão e de Kaherdin; quando os
encontrou, transmitiu- lhes a mensagem da rainha. “Irmão — exclamou
Tristão, espantado —, que me contas? Como teríamos fugido, Kaberdin
e eu, perante o duque Audret, se não encontramos os nossos escudeiros
no bosquezinho onde nos deviam esperar? Não tínhamos os cavalos.
Procuramos em vão Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin; ainda os
procuramos.”
Nesse mesmo momento, Gorvenal e o outro escudeiro
desembocaram do velho caminho abandonado, seguidos por um único
cavalo. Interrogado por Tristão, Gorvenal não pôs nenhuma dificuldade
em confessar que haviam fugido: “Senhor, que outra coisa podíamos
fazer para não cairmos nas mãos do duque Audret e da sua gente? Se
me tivesse deixado reconhecer, o traidor teria descoberto logo o segredo
do teu regresso à Cornualha.” Então o bravo disse a Périnis: “Querido
amigo, volta depressa para a tua senhora: diz- lhe que lhe mando
saudações e amor, que não faltei à lealdade que lhe devo e que nunca
fugi diante de ninguém nem ignorei uma esconjuração feita em seu
nome. Pede-lhe que me perdoe, uma vez que não falhei e que toda esta
história é o resultado de um mal- entendido. E não deixes de voltar
trazendo-me o seu perdão: aguardarei aqui o teu regresso.”
Périnis contou à rainha o que vira e ouvira; esta recusou-se a
acreditar: “Ah!, Périnis, eras o meu fiel servidor e o meu pai havia-te
afeiçoado, ainda criança, à minha pessoa. Durante anos, nada houve
que te censurar, mas eis que agora Tristão, o enganador, te conquistou
com as suas mentiras! Também tu me traíste: vai-te!” O lacaio
prosternou-se de joelhos diante dela, as mãos estendidas: “Senhora,
dizeis-me palavras duras que me ofendem e afligem. Nunca senti tal dor
em toda a minha vida! Mas pouco me importa por mim: se me aflijo, é
por vós, senhora, que ultrajais injustamente o meu senhor Tristão, e
vos mostrais iníqua com ele. Estou certo de que um dia. mas demasiado
tarde, vos arrependereis.” “Vai-te, não te acredito! Também tu, Périnis, o
fiel, me atraiçoaste!” Tristão esperou muito tempo pelo perdão da
rainha: Périnis não voltou.
De manhã, Tristão vestiu uma grande capa em farrapos e tingiu o
rosto com suco de casca de noz e vermelhão, a fim de ficar com o
aspecto de um doente carcomido e desfigurado pela lepra, como fizera
quando da assembléia da Charneca Branca. Tomou entre as mãos o
bastão de madeira venada que lhe dera a rainha e uma matraca.
Penetrou assim nas ruas de Tintagel e, disfarçando a voz, começou a
pedir esmola aos passantes. O seu único desejo e esperança eram
avistar a rainha e fazer-se reconhecer por ela. Finalmente, ela saiu do
castelo, acompanhada por Brangia e um grupo de lacaios e de
sargentos. Quando meteu pela rua que levava à igreja, o falso leproso
juntou-se ao grupo de lacaios fazendo tinir a matraca e suplicando com
uma voz dolente: “Rainha, fazei- me algum bem, não sabeis a que ponto
sofro e estou necessitado!” Isolda não se deixou iludir pela velha capa
usada e pela matraca: reconheceu Tristão pelo belo corpo, pela nobre
estatura e pelo bastão de madeira venada que lhe havia oferecido. Mal o
reconheceu, o seu corpo estremeceu todo, mas, ofendida no orgulho,
não se dignou baixar o olhar para ele. O mendigo implorou de novo e
metia dó ouvi-lo. Suplicava-lhe arrastando-se ao pé dela: “Rainha, não
vos enfureçais se ouso aproximar-me de vós! Vede a minha miséria:
tende piedade de mim!” Em vez de se comover, chama os lacaios e os
sargentos: “Expulsai este vagabundo” — ordena-lhes. Os lacaios
empurram-no e afastam-no batendo-lhe com os paus. Ele enfrenta-os
ferozmente e exclama: “Rainha, tende piedade! Sofri tanto por vós!”
Quando ouviu estas palavras, Isolda desatou a rir e entrou rapidamente
na igreja. O mendigo calou-se e afastou-se.
Nesse mesmo dia. Tristão, depois de abandonar as vestes de
leproso, despediu-se de Dinas de Lidan. Estava tão desanimado que
parecia ter perdido o juízo. No dia seguinte, em companhia de Gorvenal,
de Kaherdin e do seu escudeiro, todos vestidos de peregrinos, fez-se ao
mar para regressar à Pequena Bretanha.
Pobres amantes! A rainha não tardou a arrepender-se do seu
orgulho e dureza. Recordando a sucessão dos acontecimentos,
compreendeu finalmente que Périnis falara verdade. Tristão jamais
fugira diante do duque Audret; jamais fora esconjurado em nome de
Isolda, a loura; cometera um grave erro ao expulsá-lo. “Infeliz de mim!
— exclamou. — Pequei contra o meu amor! Doravante odiar-me-á e
nunca mais o verei. Jamais saberá quão arrependida estou nem que
penitência irei impor a mim mesma e oferecer-lhe como penhor dos
meus remorsos.” Desde esse dia. Isolda, a loura, passou a usar um
cilício e fez o voto de trazê-lo contra a carne até que Tristão a perdoasse.
XXXIII
TRISTÃO LOUCO
DE REGRESSO ao castelo de Karhaix, a casa do duque Hoel,
Tristão enlanguesce durante um ano inteiro e pergunta a si mesmo o
que deve fazer, pois nada lhe traz reconforto. A sua única esperança é
curar-se do mal de amor: preferia morrer de uma vez para sempre a
viver na dor todo o resto da vida. De toda a gente Tristão se esconde e
duvida; até se cala diante de Kaherdin, o seu bom companheiro, até
diante do seu velho mestre Governal e, ainda mais, diante da mulher,
Isolda das mãos brancas. Possui-o e persegue-o um desejo surdo:
tornar a atravessar o mar para ver, uma vez mais, a loura Isolda. Uma
manhã em que errava sem ninguém o saber, os passos conduziram-no
ao porto, onde encontrou uma grande e bela nau de mercadores
estrangeiros. Os marinheiros içam a vela e puxam a ancora. Dizem que
vão alcançar o alto mar, pois o vento é bom para bem singrar. Do
quebra-mar, Tristão grita- lhes, pondo as mãos em concha: “Onde
ides?” Várias vozes lhe respondem ao mesmo tempo: “Para a Inglaterra!”
Tristão continua: “Senhores, levai-me convosco!” “Com todo o gosto;
subi depressa!” Tristão sobe a escada e salta para a ponte. O vento
incha as velas e impele-os diretos à Inglaterra.
No décimo terceiro dia aportam em Tintagel. Tristão salta para
terra e senta-se à beira-mar. A um vilão que passa pede novas do rei
Marcos e de Isolda, a loura. O vilão responde: “O rei está no castelo e
também a rainha, mas esta tem um ar triste e pensativo como de
costume.” Tristão procura então um ardil para aproximar- se dela sem
ser reconhecido pelo rei Marcos nem por mais ninguém. Passa-lhe uma
estranha idéia pela cabeça: vai fingir de louco e introduzir-se na corte
sob este novo disfarce. Entrementes, avista um pescador que se dirige
para esse lado, vestido com uma longa cota de burel munida de um
capuz. “Amigo — diz —, troquemos de roupas: terás as minhas, que
ainda estão boas e novas, e eu terei as tuas vestes, que me agradam
imenso.” O pescador observa a roupa de Tristão e verifica sem
dificuldade que é melhor que a sua, aceita-a com alegria e abandonalhe
de bom grado a cota felpuda e remendada. Com uma tesoura,
Tristão corta- os belos cabelos e faz no alto do crânio uma tonsura em
forma de cruz, igual à que faziam usar aos loucos desse tempo. Prepara
um licor composto por certas ervas do seu conhecimento e tinge o rosto,
que não tarda a mudar de cor e a ficar negro. Disfarçar a voz era para
ele um artificio familiar. Desde então, não havia pessoa no mundo que o
pudesse reconhecer, tanto ao vê-lo como ao ouvi-lo. Ao passar ao longo
de uma sebe de arbustos espinhosos, pegou na faca e cortou um forte
ramo de azevinho, com o qual fez um bordão, que suspendeu ao
pescoço. .Chegado à porta da cidade, todos os que ali se encontravam
troçaram dele. O porteiro do castelo saudou-o com um gracejo: “Entra
filho de Urgan, o peludo, pois grande e peludo és, lembras o gigante
Urgan!” O louco entra pelo postigo: os lacaios correm ao seu encontro e
gritam, como na perseguição de um lobo: “Hu, hu! Ao louco! Eis o
louco!”
Os servos e os escudeiros perseguem-no através do palácio; por
vezes, volta-se e se lhe batem no lado direito replica com uma paulada à
esquerda, como se rachasse de meio a meio um fantasma. Aproxima-se
da porta do salão e entra sem maneiras, segurando o bastão. Logo o rei,
sentado sob o dossel perto da rainha, o avista e diz: “Vejo avançar
daquele lado um belo rapaz, em verdade! Trazei-o à minha presença.”
Vários se dirigem ao encontro do recém-chegado, saúdam-no com
escárnio, como ele próprio os saúda, e trazem-no ao rei. Marcos diz-lhe:
“Aproxima- te mais de mim, amigo. Donde vens e o que desejas?” O
outro responde: “Acabo de desembarcar de um navio de mercadores.
Também vos quero dizer quem sou e o que peço: a minha mãe era uma
baleia que vivia no mar como uma sereia. Não sei onde nasci mas sei
quem me alimentava: uma grande tigresa aleitava-me numa gruta onde
me encontrara. Estava estendido numa larga pedra e ela dava-me de
mamar. Também tenho uma irmã muito bela; dar-vo-la-ei, se quiseres,
em troca de Isolda, que amo apaixonadamente. Façamos este negócio!
Vós aborreceis-vos com Isolda: dai-ma e unide-vos a outra mulher. Se
me entregardes Isolda, serei vosso homem e servir-vos-ei até ao fim dos
meus dias.” O rei riu-se e perguntou: “Tão verdade como Deus te possa
ajudar, se te presenteasse com a rainha, diz-me, o que farias dela? Para
onde a levarias?” “Rei — respondeu o louco, conservando o olhar fixo
em Isolda —, tenho lá em cima no céu uma sala onde habito. F: toda
feita de vidro, bela e grande: pendurada nas nuvens e toda banhada
pelo sol, qualquer que seja a violência dos ventos, não se mexe nem cai.
Perto da sala há um quarto feito de cristal; quando o Sol se levanta, a
claridade é maravilhosa.” O rei e os outros desatam a rir ruidosamente
e zombam entre si dos ditos desconexos do louco. “Eis seguramente um
belo louco, divertido como é de desejar e que conta alegres mentiras!”
“Rei — diz o louco —, amo Isolda desmedidamente! Por ela o meu
coração sofre e lamenta-se. Sou Tãotris, o jogral que tanto a amou e
amará enquanto durar a sua vida!” Isolda ouve-o e suspira do fundo do
coração; aquele louco inspira-lhe cólera e despeito: “Mentes, não és
Tãotris!” O louco presta mais atenção às palavras de Isolda que às dos
outros todos; bem vê que ela está irritada e que o seu rosto mudou de
cor. Continua: “Rainha, sou Tãotris, o menestrel que outrora curaste.
Recordais-vos? Recebi um grave ferimento, pois a lança estava
envenenada; o poderoso veneno havia-se espalhado por todo o meu
corpo. A minha chegada, estava doente e fraco. Vossa mãe e vós haveis
tratado das minhas chagas com a vossa admirável ciência da virtude
das plantas e ervas. Para vos agradecer, ensinei-vos a tocar na harpa
lais do meu pais. Não me reconheceis?” “Por certo que não — respondeu
a rainha —, pois Tãotris era belo e nobre e tu és demasiado hediondo e
feio para que te possamos dar o seu nome. Deixa-nos: és louco de
nascença e eu não faço caso nenhum de ti nem dos teus disparates!”
Tristão volta-se bruscamente e bate ao sabor da maça nos que se
encontram perto dele: “Gentes loucas, ao largo! Saí daqui de dentro,
deixai-me sozinho com a rainha, pois vim para amá-la!” O rei diverte-se
imenso, mas Isolda cora e zanga-se: “Expulsai daqui este odioso bobo!”
Imperturbável, o louco retoma as divagações: “Então não vos recordais
do dia longínquo em que o rei, querendo casar convosco, me enviou
para vos trazer? Fui à Irlanda fazendo-me passar por um mercador. Isso
não me impediu de, chegado o dia. combater o dragão e o matar.”
“Insensato! Jamais realizaste os altos feitos de que te vanglorias! Aposto
que estavas ontem bêbado ao deitares-te e foi a embriaguez que te fez
sonhar isso!” “Havei-lo dito, rainha; estou de verdade embriagado, mas
foi por ter bebido uma beberagem como não há outra no mundo.
Recordai-vos: vosso pai havia-vos entregue a mim e vossa mãe
conduziu-vos até à nau que vos devia trazer até à Cornualha. Quando
chegamos ao alto mar, vou contar-vos o que aconteceu...” Nisto o louco
interrompeu-se e começou a cantarolar com um ar inspirado, como
alguém que sabe mais do que quer dizer. Vendo isto, Isolda dissimulou
o rosto no casaco e quis levantar- se para se ir embora. O rei puxou-a
docemente pelo braço e pediu- lhe que se sentasse de novo junto dele:
“Tende um pouco de paciência, doce amiga; não devemos ir até ao fim
da sua loucura? Tenho pressa de saber até onde este vagabundo quer
chegar.” Em seguida, virando-se de novo para o louco, fez-lhe muitas
perguntas: “Quero saber agora o que sabes fazer. Conheces a arte da
montaria por cães e por aves?” “Rei, quando quero caçar nas florestas,
com os meus galgos, caço os grous que voam nas nuvens; com os meus
podengos, caço os cisnes, as moças simplórias, os gansos; quando atiro
ao arco, caço vivos os mergulhões e os alcaravões.” Marcos ri
singelamente, e assim fazem grandes e pequenos. O rei pergunta em
seguida: “Diz-me, irmão, que sabes caçar no rio?” “Sire, caço tudo o que
encontro: com os meus abutres, caço os lobos dos bosques e os grandes
ursos; com os meus gerifaltes, os javalis que persigo por montes e vales;
com os meus altivos falcõezinhos, apanho cabras e gamos; com o
gavião, caço a raposa, que tem uma cauda tão bela; com o esmerilhão,
caco as lebres.” “E que mais sabes fazer?” “Sei tocar harpa e rota e
cantar afinado. Com uma faca, sei talhar aparas que deito nos riachos.
Rica rainha, sei amar e nenhum amante me excede! Também me sei
servir de um pau!” E dizendo isto, começa de novo a bater naqueles que
estavam à sua volta: “Deixai o rei tranqüilo! Deixai o rei em paz;
regressai a casa! Por que ficais aí fincados como cepos?”
Quando o rei se divertiu à farta, mandou o escudeiro selar o
cavalo para a caça e perguntou à rainha se o desejava acompanhar.
“Sire — respondeu —, agradeço-vos, mas não me sinto bem e tenho
dores de cabeça; para não ouvir nenhum barulho, quero ir repousar.”
Vai para o quarto, onde encontra Brangia; senta-se na cama, pensativa
e dolente: “Brangia, minha doce irmã, mais valia estar morta, de tal
modo a vida me é dura e amarga! Tudo o que acabo de ver e de ouvir me
contraria mais do que posso exprimir.” “Que haveis então visto e
ouvido?” “Um louco chegou ao salão do castelo, tonsurado em cruz, e
fez-me muita pena. Por certo que esse louco é adivinho e feiticeiro, pois
sabia a minha vida toda de fio a pavio. Não vejo quem lhe possa ter
revelado tudo aquilo: além de ti, de Tristão e de mim própria, quem
conhece assim o pormenor das nossas aventuras?” “Senhora — inquire
Brangia, a avisada —, esse louco será o próprio Tristão?” “Oxalá que
não! É grosseiro, hediondo e disforme, enquanto Tristão é belo, fino e
ágil. Ah!, que Deus confunda esse louco! Maldita seja a hora em que
nasceu e maldita a nau que o trouxe para este pais! É uma grande pena
que os marinheiros não o tenham atirado ao mar profundo!” “Senhora,
se não é Tristão, esse louco não será o seu mensageiro?” “Não sei nem o
creio, mas vai tu ter com ele, bela amiga, e procura saber dele quem é.”
Brangia apressou-se a obedecer à sua senhora: dirige-se para o
salão e não encontra aí ninguém, nem servo, nem lacaio, salvo o louco
sentado num banquinho. Tristão reconhece-a imediatamente: “Brangia!,
sê bem-vinda! Por Deus, tem piedade de mim!” “E por que é que havia
de ter piedade de vós?” “Em verdade, sou Tristão que tanto sofreu por
amor da rainha Isolda.” Como hesitava em acreditá-lo, ele recordou-lhe
como ela servira à rainha e a ele próprio a bebida a mágica e como
tomara o lugar de Isolda no leito do rei para este a achar virgem.
Brangia fica interdita e não sabe que responder. No seu desvario, foge
para o quarto da rainha; o louco persegue-a suplicando-lhe que tenha
piedade dele. Em seguida, penetra no quarto da rainha e, quando vê
Isolda, avança para ela e quer beijá-la na boca. Ela, confusa e
envergonhada, atira-se para trás. Tristão diz-lhe: “Rainha franca e
honrada, considerais-me doravante tão vil que já não me quereis amar?
Ai de mim!, terei vivido tanto para descobrir que me tomastes desdém?”
Isolda responde-lhe: “Por mais que vos observe, nada me diz que sejais
Tristão.” “Rainha, recordai-vos do anão Frocin que nos espiou dia e
noite e, entre os nossos leitos, espalhou farinha-flor.” “Que adivinho
sois para terdes descoberto tais segredos?” “Isolda, deveis lembrar-vos
do cão Husdent que vos dei no dia da nossa separação: que haveis feito
dele?” “Guardei sem cessar junto de mim o cão de que falais. Brangia,
vai buscá-lo e trá-lo aqui pela trela.” A criada sai e volta em seguida
com Husdent. Tristão chama o animal: “Aqui, vem cá, Husdent! eras
meu: recupero-te!” Mal o vê, o cão acorre, salta para ele e faz-lhe festa.
Levanta a cabeça para o dono, agita a cauda, lambe-lhe as mãos e
salta-lhe para a cara. Isolda maravilha-se: freme e treme de angústia.
Tristão segura Husdent nos joelhos e afaga-o. “Lembra-se melhor dos
cuidados que tive com ele do que vós do amor que vos dediquei!” Isolda
fica ofendida com esta censura e o rubor tinge-lhe as faces. Tristão
continua: “Senhora rainha, recordai-vos do anel de jaspe que me destes
quando nos separamos na floresta de Morois? Recebi-o de vós quando
vos deixei recomendando-vos a Deus.” Isolda diz-lhe: “Ê um sinal no
qual devo acreditar. Se tendes o anel, mostrai- mo!” Tira o anel e
apresenta-lho. Isolda observa-o um momento, depois começa a chorar:
“Infeliz de mim! Tristão, o meu doce amante, deve estar morto, pois
jamais teria escoltado tal louco como mensageiro e jamais lhe teria
confiado este anel!” Vendo as suas lágrimas, Tristão apieda-se:
“Senhora, vejo-vos tão leal e bela que não me quero mais esconder. ~
altura de me dar a conhecer e a ouvir.” Cessa desde então de disfarçar a
voz: “Ah, doce amor, perdoa-me por te ter imposto esta provação!”
Isolda não hesita mais, reconhece a voz que lhe é querida, deita os
braços à volta do pescoço de Tristão é cobre-o de beijos.
Depois desta troca de caricias, Tristão vira-se para Brangia e
pede-lhe: “Traz-me água: quero tirar do meu rosto este suco de erva que
o desfigura.” A criada volta com uma bacia cheia de água fresca e levalhe
o rosto: o licor de erva vai-se com o suor. Os belos traços de Tristão
reencontram a sua forma primitiva. “Ai de mim! — exclama Isolda. —
Como foi possível não te ter reconhecido? O receio de ser vitima de uma
impostura fechava-me os olhos. Ah! Tristão, tem piedade de mim: estou
arrependida!” Tristão toma-a nos braços e ela aperta-o contra o peito.
Ficai sabendo que a rainha de forma alguma o deixou partir nessa
noite. Tristão teve boa cama, bem feita e bela. Que mais poderia
desejar, uma vez que a rainha está com ele?
Chegada a manhã, Tristão diz: “Meu amor, se o rei me
surpreendesse contigo neste quarto, mandar-nos-ia matar aos dois.
Para tal salvação, embora me custe, tenho de me afastar de ti uma vez
mais.” “Ah!, Tristão, belo e doce amigo, sei que, em verdade, nunca mais
te verei neste mundo.” Tristão respondeu-lhe: “Não sei o que nos
reserva o futuro, mas estou certo de que nunca cessarei de te amar.”
Isolda continuou: “Belo amigo, toma-me nos teus braços e leva-me
então para o pais afortunado do qual me falavas não há muito, o pais
do qual ninguém regressa. Leva-me!” “Sim, iremos juntos para o pais
afortunado dos vivos. Aproxima-se a hora: não bebemos já toda a
miséria e toda a alegria? Aproxima-se o momento: quando tiver
chegado, se te chamar, Isolda, virás?” “Amor, bem sabes que irei.”
Então Tristão despediu-se da amada, mas jamais em vida a devia tornar
a ver.
XXXIV
A SALA DAS IMAGENS
DE REGRESSO À Pequena Bretanha, Tristão vivia na dor e na
angústia, pois não via mais nenhum modo de ir ter com Isolda, a loura,
a Tintagel e não podia sentir nenhuma alegria verdadeira separado dela.
No castelo do duque Hoel, ficava junto de Isolda das mãos brancas, que
todos consideravam sua mulher, mas só era sua esposa de nome, pois
nunca teve com ela nenhuma das intimidades que convém a um
marido. O duque Hoel jamais concebeu a menor suspeita do estranho
comportamento do genro, pois a filha era demasiado reservada para
revelar-lhe a sua existência íntima e os seus dissabores conjugais.
Kaherdin continuava a ser o único a conhecer o triste estado da irmã
desde que esta lho revelara, dirigindo-se à água atrevida, quando
cavalgavam juntos na passagem de um vau. O furor que sentira
primeiro acalmara desde que Tristão lhe confidenciara o drama da sua
vida e fizera com ele a viagem até à Cornualha: perante o espetáculo da
radiosa beleza da loura Isolda, compreendera a razão por que o
companheiro não pudera nem poderia nunca amar carnalmente outra
mulher. Mais ainda, a amizade dos jovens tornava-se de dia para dia
mais intima e mais confiante.
Tristão tinha por costume errar na floresta bretã sob pretexto de
perseguir a caça, mas, na realidade, para aí encontrar a solidão propicia
aos devaneios e aos pensamentos amorosos que o levavam sempre a
Isolda dos cabelos de ouro. Foi no decurso dessas longas caminhadas
que lhe acorreu a idéia de construir, nas profundezas dos bosques, um
refúgio só dele conhecido para onde teria toda a ocasião de se retirar
para pensar na amada. Prometeu a si próprio, já que não a podia ver
em carne e osso, esculpir a sua estátua com tal parecença que lhe daria
a ilusão da sua presença. Um feliz acaso não tardou a fazê-lo descobrir
o sítio que, pelo seu aspecto selvagem e inacessível, melhor convinha ao
seu projeto.
Um dia em que o duque Hoel caçava com Tristão na floresta,
chegaram a um rio cujo leito largo e profundo os obrigou a parar. O
duque disse ao genro: “Este rio marca o limite do ducado da Bretanha:
não se estende mais longe. A corrente é tão violenta e impetuosa que é
impossível a um peão ou a um cavaleiro passar de uma margem à
outra, a não ser que conheça o traçado de um vau muito estreito ao
qual nada assinala a existência; nenhum bretão lhe conhece hoje a
situação. Em redor desse vau desenrolaram-se recentemente violentos
combates em que muitos guerreiros caíram de ambos os lados e as suas
armas ficaram no leito do rio. A margem oposta pertence a um temível
gigante chamado Beliagog, que várias vezes me atacou e mais de uma
vez pilhou e devastou os meus domínios. Só com grande custo consegui
repeli-lo e conclui com ele um tratado nos termos do qual este rio
marcaria para sempre a fronteira dos nossos dois territórios: ele
comprometeu- se a nunca mais invadir o meu ducado e eu prometi em
troca nunca transpor este vau para ir à sua terra. Ora, eu quero
observar esse tratado o mais que puder, pois, se o romper, ele tem o
direito de pôr os meus domínios a ferro e fogo e de ai causar o maior
mal que puder. Se encontrar homens meus no seu território, tem o
direito de matá-los. Se animais ou cães nossos transpuserem este curso
de água, somos obrigados a comprá-los, sem que ninguém os possa
chamar e recuperar. Todos os meus barões juraram este acordo.
Também a ti, Tristão, proíbo de passares este rio, pois seria para tua
vergonha e morte.” Tristão respondeu: “Deus sabe, bom senhor, como
não desejo nada avançar até lá abaixo. Que faria ai? Esse tal gigante
bem pode guardar a sua terra em paz; não quero ter com ele nenhuma
contenda. Não me faltam florestas onde caçar! “Todavia, cravou
demoradamente os olhos na floresta que via além do vau proibido: era
feita de belas árvores, altas, direitas e robustas e das mais diversas
espécies. De um lado, era limitada pelo mar e do outro pelo rio que
ninguém podia transpor, de modo que formava verdadeiramente uma
ilha. Entrementes, o duque voltou rédeas e pôs fim às reflexões de
Tristão, iludindo as suas perguntas e arrastando-o atrás de si pelo
caminho de regresso.
Durante toda a noite que se seguiu, Tristão pensou na bela
floresta solitária e nas suas grandes árvores; projetava construir aí uma
nobre habitação, que só ele conhecesse, dedicada à lembrança e à
imagem de Isolda, a loura. Também meditava no gigante Beliagog e
desejava encontrá-lo na esperança de se medir com ele e de realizar
uma nova proeza.
Alguns dias mais tarde, partiu sem nada dizer, com o corcel, as
armas de guerra e a trompa e avançou até ao rio que marcava o termo e
o limite das terras de Hoel e do gigante. O leito, muito profundo, era
ladeado por duas altas ribas de areia. Tristão procurou o vau, mas, não
conhecendo de todo o local, lançou o corcel pela parte mais profunda da
corrente. A água cobriu até acima das cabeças cavalo e cavaleiro;
Tristão afundou-se tão rapidamente que julgou não sair vivo daquela.
Todavia, esforçou-se tanto e tão bem que acabou por ganhar pé na
outra margem. Tirou ao cavalo o freio, as rédeas e a sela para escorrer a
água, deixou o animal repousar, pôs as roupas a secar e em seguida
tornou a montar e embrenhou-se na floresta. Após ter errado durante
algum tempo, como não encontrasse ninguém, pegou na trompa e
arrancou-lhe um som tão forte e prolongado que o gigante o ouviu.
Beliagog acorreu imediatamente, armado com uma maça de
ébano. Viu Tristão no corcel e perguntou com cólera: “Quem és tu, que
ousas vir armado às minhas terras? Donde és? Onde queres ir? Que
procuras aqui na minha floresta?” O bravo respondeu tranqüilamente:
“Chamam-me Tristão e sou genro do duque da Bretanha. Via esta bela
floresta e pensei que serviria para abrigar uma casa que quero mandar
construir, pois vejo aqui as mais raras e belas espécies de árvores:
quero abater as mais belas no número de quarenta e oito dentro de
duas semanas.” Estas palavras tiveram o poder de irritar o gigante, que
respondeu: “Tão verdade como Deus me proteja, se não fosse o fato de
viver em paz e amizade com o duque, abater-te-ia com um golpe da
maça! Deixa quanto antes esta floresta, feliz por eu te deixar partir as
sim!” Tristão replicou: “Nada tenho a fazer da tua piedade! Quero abater
aqui tantas árvores quanto me apetecer e aquele que de nós dois vencer
o outro disporá do resto da floresta.” O gigante exclamou: “Não passas
de um louco inchado de presunção; mas não me escaparás tão
facilmente. Vais pagar com a vida a tua louca desmesura. Vejamos se és
capaz de agüentar o meu ataque e se o teu escudo te saberá proteger!”
Fez girar a maça acima da cabeça e lançou-a com todas as forças contra
Tristão. O bravo esquivou-se e assaltou por sua vez o gigante. Como
este se esforçava por recuperar a arma para lançá-la de novo, Tristão
colocou-se entre o gigante e a maça e tentou cortar-lhe a cabeça; falhou
o alvo, mas quando Beliagog se desviou para evitar o golpe, a espada
atingiu-o tão violentamente na perna que esta ficou decepada abaixo do
joelho e caiu no solo. Tristão visava de novo a cabeça do gigante quando
este lhe gritou: “Sire, concede- me a vida salva! Se me poupares, servirte-
ei fielmente e darte-ei todos os meus tesouros. Não faço empenho em
conservar nenhum dos meus bens, exceto a vida; leva-me para onde
quiseres e faz de mim o que te agradar!”
Quando Tristão viu que o gigante pedia clemência, aceitou a sua
submissão e as suas promessas. Até lhe pensou o ferimento e talhou
uma perna de madeira que ligou fortemente abaixo do joelho. Os servos
do gigante, acorridos ao barulho do combate, levaram-no para a gruta
onde residia. Mostrou ao vencedor os seus tesouros todos e ofereceulhos,
mas Tristão não lhes prestou muita atenção, pois o seu
pensamento não estava de modo algum, naquele momento, voltado para
as riquezas. Quando Beliagog lhe prestou vassalagem por meio de
juramento, Tristão permitiu-lhe conservar os tesouros e guardá-los em
sua casa. Em seguida, concluíram uma convenção segundo a qual o
gigante se comprometia a fornecer a Tristão os operários e os materiais
de construção necessários. O bravo podia dispor livremente da floresta
e cortar todas as árvores que quisesse. Finalmente, o gigante
acompanhou Tristão ao rio e, antes de se despedir, ensinou-lhe o
traçado exato do vau que permitia a passagem sem perigo.
De regresso a casa do duque Hoel, Tristão não disse uma palavra
acerca da sua aventura, fez como se nada lhe tivesse acontecido, e
Kaherlin, seu companheiro, não se apercebeu de nada.
A partir do dia seguinte, levantava-se de manhãzinha, cavalgava
sozinho e, secretamente, atravessava o rio no vau e chegava a casa de
Beliagog. O gigante executou fielmente as convenções: arranjou-lhe
operários, materiais e tudo o que havia prometido. Ora Tristão, ao
procurar o sitio que mais conviria ao seu projeto, notou, na extremidade
da ilha do lado do oceano, um outeiro elevado cercado por um fosso
circular que comunicava por um canal com o mar e esse fosso era tão
largo que não se podia tomar pé no outeiro nem dele sair se a maré não
estivesse completamente vaza. O montículo tinha no cimo um rochedo
perfeitamente arredondado, no qual haviam sido cavados vários quartos
abobadados com a mais exímia habilidade. A entrada era alta e
quadrada e dava luz a um primeiro aposento alongado de cerca de dez
toesas de comprimento e metade de largura. Dai, uma porta dava
acesso a uma segunda sala com o dobro da primeira, iluminada de cima
por uma clarabóia que deixava ver o céu e as estrelas, e por onde a
água da chuva descia até uma cisterna. No meio da abóbada
encontrava-se um arco de pedra decorado com folhagens, pássaros e
animais fantásticos. Nos dois assentos do arco viam-se ornamentos tão
singulares que nenhum homem vivo teria podido executar semelhantes.
Essa bela abóbada agradou enormemente a Tristão. Era obra de um
gigante vindo outrora de África, que pilhara toda a Bretanha até ao
monte Saint-Michel.
Tristão havia meditado longamente e previsto o arranjo deste
palácio subterrâneo e pôs nele todo o seu entendimento. Durante os
trabalhos, comportou-se com tanta discrição que ninguém entre as
gentes do duque da Bretanha sabia onde ele estava nem em que
ocupava o tempo. Vinha todos os dias de manhãzinha e voltava tarde.
Tristão mandou primeiro tapar a gruta com uma porta feita de várias
madeiras preciosas reunidas com grande mestria. Dentro, as paredes
foram talhadas e pintadas com ornatos de folhagem e folhas de acanto.
Na sala grande, mandou tapar a clarabóia com um vitral de diversas
cores, engastado em chumbo.
Perto do sopé do montículo, mas no exterior, mandou construir
uma sala de excelente madeira, na qual a floresta era pródiga, e cercou
esta sala com uma paliçada: era ai que trabalhavam os artífices das
diversas mestranças, mas nenhum deles conhecia as intenções de
Tristão nem por que mandava arranjar aquele palácio e executar tantas
esculturas e estátuas. Tristão apressou tanto os carpinteiros, os
fazedores de imagens, os pintores e os ourives que logo a sua tarefa foi
terminada. Então, permitiu-lhes irem-se embora, mas não sem os ter
feito jurar que guardariam silêncio sobre tudo o que haviam visto;
depois acompanhou-os até terem deixado a ilha, de regresso a casa.
Junto de si não ficou outro companheiro além de Beliagog. Ambos
levaram para o interior do palácio subterrâneo as estátuas e as
esculturas executadas pelos artífices e dispuseram-nas segundo o plano
previsto por Tristão. Cada uma estava pintada e dourada com a mais
maravilhosa habilidade.
Na primeira sala, Tristão colocou a figura do Morholt estendido
morto no seu barco. Diante dele, doze donzéis, esculpidos em madeira
pintada e marfim, e outras tantas donzelas, vestidas de seda e com
ornatos bordados, bailavam e dançavam a carola: representavam a
juventude da Cornualha celebrando alegremente a vitória de Tristão
sobre o Morholt. Mais atrás, via-se o dragão da Irlanda que se erguia
sobre a cauda, a boca aberta e as garras de fora.
A segunda sala estava ainda mais ricamente ornada do que a
primeira. O centro era ocupado por uma imagem de Isolda, a loura, de
tamanho natural: as proporções e as cores, o rosto, o aspecto e a
estatura estavam reproduzidos com tanta arte que, ao vê-la, ninguém
poderia duvidar que a vida não lhe corresse no corpo. Dos seus lábios,
por meio de um mecanismo engenhoso, escapava-se um hálito tão doce
que o seu perfume enchia a sala. Estava tão magnificamente vestida
como convinha a uma rainha. Trazia uma larga sobreveste de escarlate
bordado, apertada na cintura por um cinto de placas de prata do qual
pendia uma escarcela. A cabeça, donde caíam duas longas tranças
louras, estava ornada com um circulo de ouro onde se engastavam
pedras de todas as cores; um rico colar enfeitava-lhe a garganta, que
parecia levantar-se e respirar. Na mão direita segurava um cetro
terminado nas flores mais delicadamente trabalhadas. A mão esquerda,
adornada com um anel de jaspe verde, desenrolava uma tira onde se
liam estas palavras: “Tristão, pega neste anel e guarda-o por amor de
mim, a fim de te recordares as nossas alegrias e as nossas dores.” A
figura do malvado anão Frocin, moldada em latão, estava colocada sob
os seus pés à laia de escabelo. Isolda mantinha-se em pé sobre o peito
da pitorra disforme, que parecia chorar. Em face da rainha, encostada a
um pilar, encontrava-se a sua criada Brangia, tendo aos pés o cão
Husdent, que havia acompanhado os fugitivos na floresta de Morois e
que a rainha conservava junto de si como recordação do amigo; Tristão
fizera empenho em esculpir ele próprio na madeira a imagem do fiel
animal. A estátua da serva era um pouco menor que o natural e menor
que a da senhora; tão bela como a própria Brangia e paramentada com
os mais belos adornos, segurava na mão um vaso coberto com uma
tampa, que oferecia a Isolda com um rosto sorridente. A volta do vaso
estavam inscritas estas palavras, tal como haviam sido outrora
pronunciadas no navio: “Rainha Isolda, tomai esta bebida, que foi
preparada na Irlanda para o rei Marcos.”
No vestíbulo que precedia a primeira sala, um pouco atrás da
porta de entrada, Tristão ergueu uma estátua maior que o tamanho
natural: a do gigante Beliagog. Apoiava-se na única perna que lhe
restava e brandia com as duas mãos a maça de ébano por cima do
ombro, como que para proteger a imagem da rainha. Estava coberto
com uma grande pele de bode; esta não descia muito baixo, de modo
que ele estava nu a partir do umbigo. Arreganhava os dentes e lançava
olhares furiosos, como se quisesse matar todos aqueles que tentassem
entrar na sala. Do outro lado da porta estava postado um grande leão
moldado em cobre. Erguia-se nas quatro patas e enrolava fortemente a
cauda à volta de uma imagem feita à semelhança de Kariado, que havia
desonrado e caluniado Tristão junto a Marcos.
Quando todas as obras ficaram prontas, Tristão fechou a porta,
guardou as chaves e ordenou a Beliagog, assim como ao seu lacaio e ao
seu servo, que montassem tão boa guarda que ninguém se pudesse
aproximar da sala subterrânea. O gigante conservou os seus outros
tesouros e Tristão regozijou-se grandemente por ter sido bem-sucedido
naquele empreendimento. Regressou como habitualmente ao castelo do
duque Hoel, em Karhaix: comia, bebia e dormia junto da mulher, Isolda
das mãos brancas, e conversava amigavelmente com os companheiros.
A seguir, continuou a visitar freqüentemente a sala das imagens, mas ia
por caminhos escusos, a fim de não ser surpreendido por ninguém.
De certa vez revia a imagem de Isolda, tomava-a nos braços e
beijava-a como se ela estivesse viva e lembrava-lhe os seus amores, as
suas dores e os tormentos. Quando estava alegre, sentava-se num
escabelo de carvalho, no meio da sala, e cantava para agradar à amada
um dos lais que compusera em sua honra. Mas quando a tristeza se
apoderava da sua alma, testemunhava-lhe desagrado e cólera, pois
ainda lhe acontecia imaginar nos seus devaneios que ela o votava ao
esquecimento e que não pudera impedir-se de amar outro na sua
ausência. Desconfiava sobretudo do belo Kariado, cuja assiduidade ao
pé da rainha conhecia, e esta preocupação levava-o a conceber falsas
suspeitas. Quando experimentava tais sentimentos, censurava Isolda e
às vezes até se recusava a fitá-la, a sorrir-lhe e a falar-lhe. Nesses
momentos, era a Brangia que se dirigia: “Bela, venho apresentar queixa
junto de vós da infidelidade de Isolda, a minha amada.” Depois, pouco a
pouco, a segurança abandonava-o, o seu olhar caía sobre a mão de
Isolda e sobre o anel de jaspe verde. Revia a expressão do seu rosto no
momento da partida do amigo e recordava- se do pacto concluído na
hora da separação. Então pedia-lhe perdão pela loucura que o assaltara
durante uma hora, e media até que ponto as suas falsas suspeitas o
haviam desvairado. Era por isso que havia feito aquela imagem: não
tendo mais ninguém a quem revelar a sua vontade ou o seu desejo,
queria desvendar-lhe o seu coração, os seus pensamentos, o seu louco
erro, a sua dor e a sua alegria de amor.
Assim vive Tristão, a quem a paixão possui. Por vezes foge à
imagem, por vezes volta para ela; por vezes tem para ela olhares
radiosos e por vezes mostra-lhe um rosto de desgosto.
XXXV
A ÚLTIMA FERIDA
A SALA das imagens estava acabada há vários meses quando
Kaherdin confidenciou a Tristão uma aventura amorosa em que se
metera. Não longe de Karhaix, numa fortaleza isolada no meio dos
bosques e cercada de água por todos os lados, vivia um anão rico e
poderoso chamado Bedalis, marido ciumento de uma jovem mulher de
grande beleza que respondia pelo nome de Gargeolain. Kaherdin avistou
um dia a bela à janela da sua torre e ficou tão apaixonado que tentou
várias vezes visitá-la: todas as suas tentativas só tiveram como
resultado excitar ainda mais os ciúmes do marido e tornar ainda mais
apertado o cativeiro da mulher. Todavia Gargeolain tirou com cera o
molde da fechadura da porta flanqueada por duas torres, que se erguia
à entrada da ponte levadiça e dava acesso à cadeia, graças à qual se
podia abaixar ou subir a ponte. Fê-la chegar às mãos de Kaherdin. O
apaixonado encarregou um ferreiro de lhe forjar uma chave segundo
esse molde; quando ficou pronta, pediu a Tristão que o acompanhasse
na sua temerária aventura.
Sem outras armas além das espadas e só seguidos pelos
escudeiros, chegaram à entrada da ponte levadiça. Bedalis partira para
a caça e todos os servos o haviam acompanhado. Kaherdin abriu a
porta, baixou a ponte levadiça e foi encontrar-se com Gargeolain no
quarto. Tristão, enquanto aguardava o retorno do amigo, ficou com
Gorvenal e o outro escudeiro numa sala vizinha da entrada e
estenderam-se no chão coberto de juncos recentemente cortados.
Kaberdin demorou tanto tempo junto da amante que deu ao marido
ensejo de regressar. Quando Tristão ouviu o barulho dos caçadores que
se aproximavam, chamou Kaberdin a toda pressa e os quatro
companheiros escaparam mesmo ao combate com Bedalis.
Ao regressar ao castelo, o anão espantou-se por encontrar a porta
aberta e a ponte levadiça baixada; as suas suspeitas aumentaram
quando viu flutuar na água dos fossos uma canoa de rosas vermelhas
que Kaherdin trazia na cabeça e que, na fuga precipitada, deixara cair.
Armou-se e, à cabeça de um bando numeroso, lançou-se no encalço dos
fugitivos. Cercados por adversários muito superiores em número, os
quatro homens defenderam-se com grande coragem e mataram vários
dos assaltantes. Gorvenal desembainhara a espada e resistia
valentemente, mas sucumbiu sob o número e caiu, trespassado de um
lado ao outro. Tristão vinha em seu auxílio quando Bedalis o atingiu no
flanco com um terrível golpe da sua lança envenenada. O bravo vacilou
sob o choque, mas conseguiu manter-se na sela. Kaherdin e o escudeiro
realizaram prodígios de valor para cobrir a sua retirada até ao castelo
de Karhaix, onde chegou no limite das forças.
Os servos precipitaram-se; desceram-no do cavalo com mil
precauções, mas ele não conseguiu agüentar-se em pé e caiu sem
sentidos no pavimento. Transportaram-no para a habitação onde
residia habitualmente junto da mulher. O primeiro cuidado de Isolda
das mãos brancas foi convocar médicos para pensarem a chaga e
tratarem dele. Apresentou-se um grande número, mas nenhum deles
conseguiu descobrir a natureza do veneno: todos os seus cuidados
foram inúteis. A despeito de todos os emplastros, o mal piorava cada
vez mais, a tez do ferido alterava-se, as forças esgotavam-se, o corpo
estava emagrecido e descarnado. Tristão dirigiu-se então a Kaberdin:
“Escuta — disse —, querido companheiro; estou aqui em pais
estrangeiro e não tenho nem parente nem homem da minha raça para
me socorrer na minha necessidade. Desde que perdi o meu querido
Gorvenal, só te tenho a ti como amigo: és o único ser no qual me posso
apoiar. Fica sabendo que mais ninguém me pode curar além de Isolda,
a loura. Só ela, se o quiser, pode realizar esse milagre. Contanto que
seja informada do estado em que me encontro, estou certo de que não
se poupará a nada para me salvar. E por isso que, em nome da nossa
amizade, te suplico que a vás procurar ao castelo de Tintagel e lhe
peças que venha sem demora contigo para me salvar a vida.” Kaherdin
ficou comovido com as lamentações de Tristão e, para consolá-lo, disselhe
doces palavras: “Não chores mais, Tristão, farei tudo o que quiseres.
Se fosse preciso, afrontaria a morte para te devolver a saúde. Diz-me
somente a mensagem que devo levar à rainha Isolda e preparar-me-ei
sem demora para essa viagem.” “Escuta-me, pois — respondeu Tristão.
— Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para
que seja entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à
corte, mal lhe apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu
mensageiro e achará maneira de falar-te comodamente sem que
ninguém vos possa ouvir. Depois de a teres saudado da minha parte,
diz-lhe que não há para mim nenhuma esperança de cura se ela não me
vier tratar em pessoa. A menos que me reconforte com um beijo da sua
boca, terei de ir desta para melhor com grande desgosto meu. Recordalhe
que, por amor dela, me expulsaram e exilaram vergonhosamente em
terra estrangeira: passei por tantas dores e lutei tanto que já só tenho
um sopro de vida, muito débil. Desde que fui coagido a afastar-me dela,
jamais, e tu sabe-lo, amei outra mulher: quanto mais se esforçaram por
me separar dela, menos o conseguiram. Companheiro, esforça-te por
conduzi-la até ao meu leito de dor; se não regressas depressa com ela,
nunca mais me tornarás a ver. Toma também cuidado para que
ninguém saiba nada disso além de nós os dois: apresentá-la-ás como
uma hábil curandeira vinda de uma terra estrangeira para tratar do
meu ferimento. Sobretudo, nada digas a tua irmã Isolda das mãos
brancas, a fim de que ela não suspeite do meu amor por Isolda da
Irlanda.” Kaherdin respondeu: “Diz-me que navio devo tomar para essa
viagem e que prazo me concedes para ir à Cornualha e voltar com a
rainha.” “Leva a bela nau com que te presenteou o teu nobre pai, o
duque Hoel, e recruta a equipagem entre os melhores deste país. Não
sei ao certo quanto tempo te será necessário para ir a Tintagel e voltar
com a rainha: tudo dependerá dos ventos e do estado do mar.” “Na
minha opinião — observou Kaberdin —, não estarei de retorno, por
mais diligências que faça, antes de uma quarentena de dias.” “E
possível — replicou Tristão. — Não sei se terei forças para agüentar
tanto tempo sem ser socorrido, mas Deus sustentar-me-á pela virtude
da esperança. Além disso, para que enlanguesça menos tempo na
incerteza da espera, peco-te, belo companheiro, que leves duas velas
contigo: uma branca e outra preta. Se conseguires decidir Isolda a vir
curar-me a chaga, iça a branca no retorno: assim, a alegria que
experimentarei iniciará a minha cura antes mesmo de teres ancorado
no porto. Se, por infelicidade, não trouxeres a minha terna amada,
então desfralda a vela preta e eu cessarei de reter o que me poderá
restar de vida. Vai! Nada mais tenho a dizer-te: que Deus te conduza na
tua viagem e te traga são e salvo!” Kaherdin abraça Tristão e, muito
dolorosamente, despede-se dele.
Ao primeiro vento favorável, Kaberdin faz-se ao mar, os
marinheiros levantam as ancoras, içam o mastro e singram para o
largo, levados por uma suave brisa. Durante vários dias cortam a toda a
velocidade as vagas e as ondas, a todo o pano. Kaberdin mandou
carregar debaixo da ponte tecidos de seda, louça de Tours, vinhos de
Anjou e de Poitou, pássaros de Espanha: far-se-á passar por um
mercador, a fim de dissimular o objetivo real da sua missão.
XXXVI
A MORTE DOS AMANTES
CÓLERA de mulher é coisa temível: todo o homem se deve
preservar dela, pois onde uma mulher mais amou, a~ porá o máximo de
ardor a vingar-se. Nas mulheres, o ressentimento dura mais tempo que
a afeição: elas que regateiam o amor, prodigalizam ao desbarato o ódio
enquanto durar a cólera. Thomas de Inglaterra não ousa dizer todo o
seu pensamento sobre esta questão: não é assunto de um poeta.
Isolda das mãos brancas, escondida do outro lado da parede,
escutara e surpreendera a conversa secreta de Tristão, seu marido, com
Kaherdin, seu irmão. Eis que descobriu, de repente, todo o mistério
daquele amor! A cólera enche o seu coração: não desejou tanto Tristão
para vê-lo voltar-se para outra! Agora compreende bem por que é que
Tristão, desde que casara com ela, perdera toda a alegria e jovialidade.
Fixa todos os pormenores do que ouviu por manha, fingindo ignorá-lo,
mas, mal tenha ocasião, vingar-se-á cruelmente do homem que crê
amar mais que tudo no mundo. Assim que se abriram as portas, Isolda
entrou no quarto. Dissimula a Tristão a cólera, serve-o com cortesia e
mostra um rosto afável, como uma amiga deve mostrar ao seu amigo.
Por vezes, até o beija e abraça; simula um perfeito amor, mas medita
numa vingança traiçoeira e espreita o momento de saciar o seu rancor.
Por vezes procura saber notícias; pergunta quando Kaherdin deve
regressar com o médico que curará Tristão. Todavia, é falsamente que
geme com o sofrimento do marido: a dissimulação escolheu para
morada a sua alma e ela conta, se tiver poder para tal, castigar
cruelmente Tristão pelo que considera uma infidelidade e um ultraje.
Entretanto, Kaherdin voga no alto mar. Aporta em Tintagel e
desembarca com as mercadorias. Diante do castelo do rei, desenfarda a
pacotilha, estende os panos de seda, expõe em gaiolas os pássaros de
Espanha, matizados e soberbos. Tão depressa empunha um açor na
muda, como logo desdobra um pano de seda tecido do Oriente. Eis,
finalmente, uma taça de trabalho delicado cinzelada e niquelada.
Oferta-a ao rei Marcos e diz-lhe, com a maior boa vontade do mundo,
que vem ao seu reino portador de ricos tesouros, na esperança de
ganhar ainda mais. O rei dá-lhe toda a liberdade e segurança para
vender as mercadorias no seu reino.
Kaherdin solicita então permissão para ir apresentar à rainha
Isolda as suas ricas jóias. Presenteia-lhe uma fivela de ouro fino, a mais
delicadamente trabalhada, afirma, que há em todo o mundo. Nunca
Isolda vira uma tão bela. Então Kaherdin, tirando do dedo o anel de
jaspe verde que Tristão lhe confiara, coloca-o ao lado da fivela e diz:
“Rainha, vede como as pedras preciosas encastoadas na fivela têm
menos brilho que o jaspe verde no qual é feito o engaste deste anel!” Mal
a rainha vê o anel, não se engana é aquele mesmo que dera a Tristão.
Examina mais de perto os traços do mercador e reconhece nele
Kaherdin, o companheiro de Tristão. Então o coração salta-lhe no peito,
empalidece e suspira profundamente, pois teme que o pretenso
mercador seja portador de má noticia. Para saber mais, pergunta se
quer vender o anel de jaspe verde e que soma deseja. Kaherdin, fingindo
discutir o preço, segue-a até um canto do quarto: “Rainha — diz —,
escutai bem o que vos vou anunciar: Tristão, o vosso amigo, saúda-vos
como a dama em quem está a sua vida e a sua morte Faz-vos saber que
foi ferido por uma lança envenenada: enlanguesce com dores horrorosas
e não tem mais nenhuma esperança de recuperar a saúde e a vida se
vós não vierdes curá-lo em pessoa. Jaz em grande dor, deitando um
cheiro repugnante e intolerável. Se lhe recusais a vossa ajuda, não
poderá sobreviver. Pela fidelidade que lhe deveis, não hesiteis por nada
deste mundo em responder ao seu chamamento. Vim expressamente
para conduzir-vos até ele.” Ao ouvir esta mensagem, Isolda fica tomada
de uma angustia como jamais conhecera. A resolução é rapidamente
tomada: vai tentar a viagem e acompanhar Kaherdin na nau.
Lá para a noitinha, Isolda prepara com a ajuda de Brangia aquilo
de que necessita para a travessia e aguarda, para sair do castelo, que
toda a gente esteja a dormir. lá noite cerrada, enquanto Brangia fica de
atalaia, sai furtivamente do palácio sem alertar quem quer que seja,
deslizando por uma poterna baixa que desembocava no mar. O barco de
Kaherdin espera perto dali. Assim que a rainha subiu a bordo, os
marinheiros fazem-se à vela e vão impulsionados pelo vento. Em breve a
nau ligeira aponta para a costa armórica.
Ora, Tristão, a quem a chaga retém estendido, sofre o martírio no
seu leito: nada o consegue aliviar, nenhum remédio lhe serve e, o que
quer que faça, nada o acalma. Se ainda se esforça por prolongar a vida,
é porque aguarda a chegada de Isolda, a loura, esperando que ela venha
e lhe alivie o mal. Todos os dias envia alguém à beira-mar para espiar o
retorno de Kaherdin, e este único desejo lhe absorve todo o ardor da
alma. Por vezes, ordena que o levem para a costa, que lhe façam a cama
diante do mar para ver se a nau está à vista e que vela arvora. Por vezes
também manda que o tragam de regresso a casa com medo da
infelicidade que já adivinha, pois receia de repente que a rainha não
venha; se tal acontecesse, preferiria sabê-lo por outrem a ver com os
seus próprios olhos o navio regressar sem ela. De volta a casa, queixase
muitas vezes à mulher, mas sem lhe revelar a verdadeira causa do
seu tormento; deplora unicamente a lentidão de Kaherdin, que tarda a
trazer o médico de que necessita.
O navio que trazia a amiga tão desejada aproxima-se agora da
costa. A roda da proa traçava nas vagas uma alegre esteira quando uma
borrasca se levantou, pegou no mastro com vento de proa e fez o navio
girar. Os marinheiros acorrem ao ló, voltam a vela, mas em vão: quer
queiram quer não, são impelidos para o largo. O vento sopra
furiosamente, levanta as vagas, o mar agita-se até às profundezas, o
céu escurece e uma bruma espessa estende-se sobre as ondas negras.
Chove, saraiva; no céu amontoam-se nuvens, no barco bolinas e
cordames partem-se com estrondo. Descem o mastro e avançam
bordejando com o vento e as vagas. Isolda, a loura, impressionada com
o espetáculo da tempestade, dirige-se a Tristão como se este a pudesse
ouvir: “Deus não me quer deixar viver o suficiente para te rever, meu
amor. Decidiu que eu pereceria afogada no mar. Tristão, se pudesse
falar-te ainda uma vez mais, não me importaria com a minha morte.
Mas não depende da minha vontade estar perto de ti nesta hora; se
Deus o permitisse, já estaria ocupada a curar o teu mal. Amigo, eis o
fim de um sonho! Pensava morrer nos teus braços e repousar contigo
no mesmo túmulo. Ai de mim!, é mais uma ilusão que temos de perder!”
Durante dois dias, a borrasca e a tempestade fustigaram o mar;
no terceiro, o vento amainou e o bom tempo voltou. Kaherdin, olhando
de longe, viu surgir na bruma as falésias da costa bretã. Radiante,
mandou desfraldar o mais alto possível a vela branca, a fim de anunciar
a Tristão a boa nova: Isolda, a loura, chega! Estava a chegar ao fim o
prazo de cerca de quarenta dias que Kaherdin fixara a Tristão para a
viagem. Cúmulo do infortúnio: eis que o vento abranda, o sol aquece. O
mar fica numa calmaria total, a nau não se move nem para um lado
nem para outro e deixa- se embalar pelo marulho das vagas. Os
marinheiros estão exasperados: a terra está ali à vista deles, mesmo
próxima, e nenhuma brisa os empurra para ela. Ei-los no pior dos
embaraços.
Entretanto, Tristão, doente e cansado, por vezes queixa-se, por
vezes suspira por Isolda que tanto deseja. Torce as mãos e as lágrimas
correm. Neste desgosto, nesta angústia, vê a mulher avançar para ele;
esta se lembra de um pérfido artifício e diz- lhe: “Kaherdin está a
chegar! Avistei a nau ao longe no mar. Estou certa de que é a sua. Deus
queira que vos traga uma nova da qual tireis reconforto!” Ao ouvir estas
palavras, Tristão sobressalta-se e pergunta: “Bela amiga, estais
absolutamente certa de que é a nau de Kaherdin?” “Não duvideis;
reconheci-a bem “ “Dizei-me, peço-vos, não mo escondais: de que cor é
a vela que esvoaça na verga?” Isolda responde numa voz que deseja
segura: “A vela é preta!” Tristão não responde nada. Volta-se para a
parede e diz: “Isolda, não quisestes vir para junto de mim! Por vosso
amor tenho de morrer hoje!” Depois, após um curto instante, acrescenta
numa voz apagada: “Não posso reter a vida mais tempo.” Por três vezes,
pronunciou “Isolda, meu amor!”; a quarta, entregou a alma a Deus.
No mesmo momento, o vento levantou-se no mar: conduziu sem
tardar até à margem a nau de Kaherdin. Antes de qualquer outra
pessoa, Isolda, a loura, desceu a terra. Ouve grandes lamentos
elevaram- se nas ruas de Karhaix e o dobre que soa nos campanários
das igrejas. Pergunta aos transeuntes a razão por que tocam os sinos,
por quem chora todo aquele povo. Um velho responde-lhe: “Bela dama,
que Deus me ajude! Aconteceu nesta terra uma grande infelicidade:
Tristão, o bravo, o franco, morreu! Acaba de falecer na cama de uma
ferida de que nenhum médico o pôde curar.” Ao ouvir esta notícia,
Isolda, a loura, fica muda de dor. Corre pelas ruas como uma louca, o
vestido desapertado, pois quer chegar antes dos outros ao castelo. Os
bretões admiram-na à passagem: jamais haviam visto mulher de
semelhante beleza, mas não sabem nem quem é nem donde vem.
Isolda transpõe a porta do castelo e atinge logo o quarto onde
repousava o corpo do amigo. Isolda das mãos brancas lamentava-se
diante do corpo, chorando e soltando grandes gritos. A recém- chegada,
pálida e sem uma lágrima, aproxima-se dela e diz-lhe: “Mulher, levantate
e deixa-me sozinha aqui. Tenho mais direito de me afligir do que tu.
Acredita-me: amei-o mais!” Mantém-se em pé diante do leito fúnebre, a
cabeça voltada para a frente, as mãos erguidas para o céu, e reza em
silêncio; em seguida dirige- se a ele para deplorar o seu falecimento:
“Tristão, morreste por amor de mim. Uma vez que já não vives, também
eu não tenho nenhuma razão para viver. Tudo doravante me será sem
doçura, sem alegria, sem prazer. - Maldita seja a tempestade que me
atrasou no mar! Se tivesse podido chegar a tempo, ter-te-ia devolvido a
saúde e tenhamos docemente falado do terno amor que nos une. Mas já
que te não posso curar, que possamos ao menos morrer juntos!”
Aproxima-se do leito e estende-se a todo o comprido sobre o corpo de
Tristão, rosto com rosto, boca com boca. Neste abraço supremo,
sucumbe à violência da dor e expira num soluço.
Kaherdin, com o assentimento do duque Hoel, seu pai, já
demasiado idoso para tomar decisões, mandou prestar as honras
fúnebres à rainha Isolda e a Tristão. Mandou embalsamar os corpos
com vinho, pimenta e ervas aromáticas e colocar cada um, cosido numa
pele de veado, numa barca feita de um tronco escavado ao fogo. Os dois
corpos foram assim transportados por um navio até ao porto de Tintagel
e entregues ao rei Marcos por um enviado de Kaherdin.
“Sire — disse o mensageiro —, o duque Hoel da Bretanha e
Kaherdin, seu filho, enviam-vos por mim saudações e amizade
Encarregaram-me de vos entregar os corpos da rainha Isolda, a loura,
vossa mulher, e do bravo Tristão, vosso sobrinho, cujas almas ponha
Deus entre o escol do Paraíso! Tristão, que libertou o ducado da
Bretanha de todos os seus inimigos e tornou por mulher a filha do
duque Hoel, foi ferido pela lança envenenada de um anão que Deus
amaldiçoe! Como todos os médicos eram impotentes para curar a ferida,
mandou chamar a toda a pressa a rainha Isolda, vossa mulher, que já
por duas vezes, por meio da alta ciência herdada da mãe, o havia
arrancado à morte. Infelizmente, embora tenha acorrido ao primeiro
apelo, chegou demasiado tarde a Karhaix, quando Tristão acabava de
entregar a alma a Deus, e ela própria morreu de comoção e compaixão.
Possa o Senhor Todo- Poderoso conceder-vos amparo e consolação no
momento em que haveis perdido ao mesmo tempo a mais bela das
mulheres e o mais valente dos sobrinhos! Possa Ele conceder-vos longa
vida, saúde, honra e vitória sobre os vossos inimigos!”
O rei Marcos ficou comovido com este discurso, e quando viu os
dois corpos embrulhados nas peles de veado e deitados nas barcas,
sentiu extinguir-se a cólera e acalmar-se o ressentimento, como
outrora, quando havia descoberto os dois fugitivos estendidos lado a
lado na cabana de folhagem de Morois. Com grandes honras, no meio
das lamentações do povo, mandou enterrar perto de uma capela os
corpos dos dois amantes. No túmulo de Isolda, a loura, plantou uma
roseira vermelha e no de Tristão um cepo de nobre vinha. Os dois
arbustos cresceram juntos e os seus ramos entrelaçaram-se tão
intimamente que foi impossível separá-los; de cada vez que os podavam,
tornavam a crescer com todo o vigor e confundiam a sua folhagem.
Aqui acaba o romance de Tristão e Isolda. A todos os amantes, o
narrador dirige a sua saudação: aos sonhadores, aos enamorados, aos
ciumentos, a todos aqueles a quem o desejo morde, aos divertidos, aos
enlouquecidos, a todos aqueles que lerem esta história! Se não disse a
todos o que teriam desejado, disse-o pelo menos o melhor que pude e
disse a verdade pura tanto quanto a pude conhecer. Suprimi um pouco
à narração; o que conservei, escolhi-o para ilustrar e embelezar esta
história, a fim de agradar aos amantes e de estes aí encontrarem com
que deleitar o coração. Possam eles dela tirar reconforto contra as
traições, contra as injustiças, contra as dores, contra as lágrimas,
contra todos os desgostos de amor!